Na pauta da 9ª. Festa Literária Internacional de Paraty, mais do que a poesia, a prosa ou a agitação cultural produzida por Oswald de Andrade, o que esteve no centro das atenções foi a crítica literária.
Ao convidar para a conferência de abertura o pai fundador da crítica nacional, Antonio Candido de Mello e Souza “que fez questão de enfatizar os 30 anos que o separam tanto de Oswald quanto de seu ex-aluno José Miguel Wisnik, com quem dividiu a mesa”, o diretor de programação, Manuel da Costa Pinto, parecia querer promover uma passagem de bastão da tradição crítica brasileira com ares de consagração.
Não foi bem o que aconteceu: a fala de Wisnik, um dos intelectuais mais respeitados do país, incomodou pela extensão desproporcional à do mestre, resultando pesada a boa parte da audiência. Wisnik parecia ter errado a mão.
Candido, por sua vez, não poupou a própria crítica literária contemporânea, ao afirmar que, atualmente, a resenha vinda da universidade é dominante nos jornais e se refugia no campo sem riscos dos autores consagrados, como Clarice Lispector ou João Cabral de Melo Neto.
Jornal
“Sou de um tempo em que a crítica literária era atividade jornalística. Levei para a universidade a crítica jornalística. Hoje é o contrário: a universidade tomou conta da crítica, e os professores vêm escrever no jornal. Eu não, eu fui do jornal para a faculdade”, disse ele.
“Hoje, a crítica literária acadêmica é uma atividade extremamente segura. Os rapazes fazem tese sobre Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Clarice Lispector. Agora, a pessoa pegar o livro [de um autor contemporâneo] e dizer “este é bom, este é ruim”, isso acabou.”
A fala pessimista de Candido pôs a própria crítica literária na berlinda da mais crítica das Flips. Dentre todos os curadores da festa, Manuel da Costa Pinto distingue-se por ter feito da crítica o centro de suas atividades, inclusive na Folha. Ao contrário de seus antecessores, que privilegiaram jornalistas para o posto-chave de mediador da maioria das mesas, Costa Pinto escolheu nomes consagrados ou em ascensão na crítica nacional, de Wisnik a João Cezar de Castro Rocha, passando por Márcio Seligmann-Silva e Eduardo Sterzi, este na condição de autor convidado.
Embora avalie que Wisnik extrapolou em sua intervenção, Paulo Henriques Britto, 60, um dos autores convidados, busca uma explicação espirituosa para o desconforto: “Depois do Frank Sinatra, tudo é anticlímax”.
Em 2011, Britto comemora os 30 anos de publicação de seu livro de estreia, Liturgia da Matéria (esgotado). Nesse período, exibiu invejável trânsito por áreas aparentemente inconciliáveis.
Presença constante no mercado editorial, traduziu 102 livros, entre best-sellers (vide Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson) e a literatura de vanguarda de Thomas Pynchon ou a poesia de Elizabeth Bishop; tem uma sólida produção acadêmica, focada em linguística e estudos da tradução; e, ainda por cima, é um dos poetas mais respeitados e premiados do país.
Em sua participação na Flip, ao lado da britânica Carol Ann Duffy, leu o poema inédito “Lorem Ipsum”, reproduzido nesta página. Como consegue conciliar tudo isso, especialmente no vespeiro da poesia nacional, ainda por cima fazendo cara de que amanhã vai dar praia? “Para mim, há várias coisas muito mais importantes do que a literatura. É claro que gosto de escrever, tenho vaidade, gosto de ganhar prêmio como todo mundo, mas nunca investi muito a minha vida nisso”, diz.
Britto foi um dos intelectuais que a Folha ouviu na Flip para saber se de fato os acadêmicos terão se apoderado do espaço da crítica antes exercido nos jornais, trazendo com eles a ausência de ousadia inerente ao estudo exclusivo de autores canônicos.
Preguiça
“Não é só aquilo que o Antonio Candido apontou, o medo de correr riscos”, diz Britto. “Há um bocado de preguiça. Ler João Cabral é tranquilo, todo mundo sabe que João Cabral é relevante, é importante. Quem sabe você não vai descobrir mais um cê-cedilha lá que ninguém tinha reparado?”, espeta. “Agora, enfrentar essas centenas de livros de poesia que estão aí, separar o trigo do joio, é um trabalho muito mais difícil.”
Para ele, o assunto se torna especialmente complicado quando se trata de poesia. “No meio universitário, é muito pequeno o número de pessoas que estão trabalhando com poesia nova. Sou professor da PUC-Rio. De um grupo de cerca de 10 professores, apenas dois se debruçam sobre a poesia. Todos os outros se dedicam à prosa”, conta.
O diagnóstico é contestado por um dos mais jovens críticos escalados para a festa, Eduardo Sterzi, 38. Para ele, a visão de Candido “não procede”: “Até por estar afastado do trabalho da universidade, é uma visão que vem de fora. Quem está trabalhando na universidade percebe que há uma tendência cada vez maior de atenção ao contemporâneo”.
Sterzi afirma que a questão não se reduz a estudar autores contemporâneos ou canônicos. Cumpre estabelecer relações entre eles: “Estudo tanto sobre autores contemporâneos quanto a respeito de autores medievais. É impressionante o que eu consigo vislumbrar de questões que são colocadas pioneiramente no período medieval e que vão ser desdobradas, seja por autores como Drummond e Oswald, seja mais recentemente, por Augusto de Campos ou até pelos poetas contemporâneos”.
O crítico, jornalista e ex-curador da Flip Flávio Moura também procura situar o lugar a partir do qual Antonio Candido fez sua intervenção mas observa que, em vez de estar “fora”, como quer Sterzi, ele está no centro de tudo o que se fez na crítica.
“Ele falar isso é muito diferente de uma pessoa que não tem a credibilidade dele”, diz Moura. “O Antonio Candido começou no jornal, mas instituiu a crítica universitária, fundou os departamentos de Letras da USP e da Unicamp. Não dá pra levar ao pé da letra”.
Poesia
Em sua conferência, Antonio Candido lembrou que muitos críticos deixavam de escrever sobre Oswald por medo de serem enxovalhados pelo poeta. O ambiente belicoso da poesia não seria também um dos motivos que afastam os críticos dos poetas vivos?
“Conheço uma pessoa que já me disse que não casou e não teve filhos porque queria se dedicar inteiramente à literatura”, diz Britto.
“Você imagina o peso que é para essa pessoa receber uma crítica desfavorável. O cara se suicida. Eu nunca investi na minha poesia esse capital emocional de modo algum.”
“A vituperação, esse animus dos poetas em discussão de poesia, é inversamente proporcional ao interesse que a poesia desperta no grande público”, conclui ele. “Parece que os poetas são particularmente sensíveis à crítica, até pelo fato de que ninguém lê.” Outro poeta carioca, Chacal, afirma que não dá bola para crítica de nenhuma natureza. “Confesso que não leio muito. Parece que é sempre uma coisa já previsível, pouco inventiva”, diz.
“Mas falo isso de forma leviana, porque não leio cadernos de cultura. Infelizmente, acho que é um erro tanto meu quanto dos cadernos de cultura.” Acompanha a produção acadêmica? “Também não.”
Chatos
Para Flávio Moura, a avaliação de Candido faz sentido “mas o medo de correr riscos também existe nos jornalistas, não só na academia”. Os jornalistas, segundo ele, não aceitam a hipótese de “não serem engraçados, de não serem venenosos e de parecerem chatos”, o que os desvia de uma discussão mais aprofundada que é feita na academia.
Ser (ou parecer) chato talvez seja um ponto importante na discussão. Na visão do jornalista e ficcionista Paulo Roberto Pires, a consequência de longo prazo da situação descrita por Candido é “um tédio profundo diante desta vida literária chata que a gente leva”.
Pires, que é editor da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, atuou como um combativo crítico na virada dos anos 2000, tendo revelado (ou ajudado a revelar) jovens autores que hoje gozam de projeção nas letras nacionais, como Cecilia Giannetti, Daniel Galera, Joca Reiners Terron, Daniel Pellizzari, João Paulo Cuenca, Chico Mattoso e Santiago Nazarian.
Para ele, “há uma dificuldade muito grande em apostar. Esse senhor de 92 anos foi ao jornal dizer que uma moça de 17 anos chamada Clarice Lispector valia a pena. Digamos que há nisso um risco que ninguém corre hoje”.
Ter se transformado em editor (da Agir e, depois, do Instituto Moreira Salles) prejudicou seu trabalho como garimpeiro literário? “A atenção dispersa do jornalismo é melhor, num certo sentido, para você prestar atenção. Se alguém conseguisse combinar a atenção dispersa do jornalista com a atenção do crítico, seria perfeito.”
E arremata, como que respondendo, ainda que de modo enviesado, a Antonio Candido: “Não dá pra ser otimista em bloco, mas também não dá pra ser pessimista em bloco.”
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[Paulo Werneck é tradutor e editor do caderno “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo]