Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Companheiro inseparável dos jornalistas

Todo jornalista tem um pouco de escritor e artesão, trata com cuidado seu idioma, burila, molda, esculpe com zelo o seu texto. Não há jornalista sério que não cuide da elegância da escrita. Os prazos de fechamento são cada vez mais exíguos, mas criar um bom texto é também arte. Por isso todo jornalista que se preza tem sempre à mão dois ou três dicionários para consultas rápidas enquanto redige apressado seu material.


As consultas são rápidas, mas frequentes. E os dicionários vão se tornando pouco a pouco amigos confiáveis e inseparáveis. Tão íntimos que passam a serem carinhosamente chamados pelos nomes próprios dos autores: ‘cadê o Aurélio‘, ‘quem viu o Houaiss‘, e assim por diante. Como se fosse uma consulta aos próprios autores, que precisam estar sempre disponíveis.


Parte das consultas ao amigo fiel é apenas para tirar uma dúvida rápida a respeito da grafia de tantas palavras traiçoeiras da língua portuguesa. Mas, boa parte delas é para encontrar uma palavra que expresse com maior fidelidade uma ideia ou que substitua um termo similar já utilizado na frase. Jornalista não gosta de repetir palavras.


Preciosidade esgotada


Nesta busca por expressões análogas, os jornalistas estavam abandonados. Os dicionários de sinônimos e antônimos da língua portuguesa disponíveis trazem apenas significados imediatos ou óbvios. Não satisfazem quem quer substituir criativamente alguma palavra ou expressar com precisão e fidelidade um pensamento. A maioria repete e traz somente sinônimos idênticos aos dicionários tradicionais, nunca variações sutis e significados semelhantes que comuniquem com criatividade e fidelidade uma ideia ou conceito.


Os jornalistas não estão mais abandonados: eles têm agora um novo companheiro inseparável. Depois de 40 anos esgotado, foi relançado pela Lexikon o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, revisto e ampliado. Para quem prefere, a versão eletrônica também está disponível no mercado. O novo dicionário é muito mais que sinônimos e antônimos. É um thesaurus, nome que os filólogos atribuem a uma ferramenta de busca de significados simétricos. Em quase 800 páginas o usuário encontra cem mil palavras com cerca de 160 mil expressões análogas como sugestões de uso. Com esse tesouro, só não varia o léxico, enriquece o estilo e dá maior elegância ao texto quem não quer.


Chico Buarque, que assina a apresentação da nova edição, é fã de carteirinha do livro. Ele conta que seu pai lhe repassou uma cópia da primeira edição do dicionário pouco antes de morrer. Escarafunchando o livro, ele terminou muitas de suas canções. Notando que seu exemplar se desgastava de tanto uso, e com medo de ficar sem sua ferramenta imprescindível, Chico começou a procurar o dicionário em sebos e foi comprando todos até juntar uma coleção de exemplares. Essa preciosidade, esgotada há tanto tempo, está novamente disponível para quem gosta de lapidar o texto.


Amigo que não nega favores


O autor da obra, o Professor Ferreira, como ele gostava de ser chamado, é uma personalidade singular que merece ser apresentada aos seus novos amigos. Ele nasceu em 1875 em Goiás Velho, antiga capital do estado de Goiás, e dedicou-se ao ensino das matemáticas, português e latim. Ali viveu e ali morreu, em 1942. Nas décadas de 20 e 30 do século passado o professor andava sempre com uma cadernetinha surrada onde anotava pacientemente à mão todos os verbetes que ia escutando nas conversas pelas ruas da cidade. Demorou 20 anos para escrever seu dicionário. Conta-se que ele era tão empolgado com suas aulas de matemática no Liceu que no dia de ensinar o Teorema de Pitágoras vestia-se de fraque e cartola para dar à aula a solenidade que o teorema merecia.


Naquela época, no interior do país, jantava-se entre 15 e 16 horas, por uma razão simples: não havia luz elétrica e a tralha da cozinha precisava ser lavada antes de escurecer. Isso dava ao Professor Ferreira tempo para postar-se na janela de sua casa, na Rua Nova da Relação, por onde passava o footing vespertino da cidade. Ficar na janela observando o povo passar corresponde hoje a ver televisão, ao vivo, com maior interatividade. Grande número de pessoas parava na janela do Professor Ferreira para pedir conselhos e jogar conversa fora. Certa vez, um analfabeto parou e o pediu para escrever uma carta que precisava enviar a um parente. Satisfeito o pedido com o capricho de sempre, o professor leu a carta até o fim e perguntou: ‘Está bem assim?’ O outro disse que sim, mas pediu ao professor para acrescentar ao final: ‘Desculpe os erros e a caligrafia’. No que foi atendido.


Como um professor de costumes simples, desligado, brincalhão e prestativo, como relatam hoje seus herdeiros, pôde produzir no início do século passado, trabalhando à luz de velas nos confins do país, uma obra tão sistemática e preciosa, quando não havia xerox nem computadores, sequer a energia elétrica? Um trabalho pioneiro, tão útil e atual que volta a ser editado e disponibilizado eletronicamente? Certamente o seu espírito científico privilegiado, sua imensa capacidade para observar a realidade e seu discernimento para classificá-la simultaneamente como cientista e humanista.


O Professor Ferreira é o novo companheiro que jornalistas e outros profissionais das letras e pensamentos podem confiar ao produzir seus textos. Usem e abusem de sua erudição, competência e serventia. O amigo não negará favores. Vale a pena tornar-se amigo íntimo do Professor Ferreira, como Chico Buarque fez. O resultado, todos conhecemos.

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Jornalista e professor da Universidade de Brasília