Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A guerra que criou o Brasil

Um dos grandes mitos perpetuados sobre a Independência do Brasil, na análise do jornalista e escritor Laurentino Gomes, é a ideia de que a separação de Portugal foi totalmente pacífica, um grande acordo político entre D. João VI, que retornara a Lisboa em 1821, e D. Pedro I, que ficara no Brasil. No recém-lançado 1822 (Ed. Nova Fronteira), Gomes mostra que, na verdade, o processo foi muito violento.

‘A ideia de que separação foi pacífica, negociada entre pai e filho, não é verdadeira’, afirma Gomes. ‘Em Minas, Rio e São Paulo foi um processo tranquilo. Mas no Norte, no Nordeste e no Sul o pau quebrou durante um ano e oito meses. E morreu muita gente. Pelos meus cálculos, foram 5 mil mortos. Não chega perto dos 25 mil da independência americana, mas também está longe de ser pacífico.

‘O mais trágico confronto da Guerra da Independência’, nas palavras de Gomes, foi a pouco conhecida Batalha do Jenipapo, travada no sertão do Piauí, entre brasileiros e portugueses em 13 de março de 1823. O resultado, diz o escritor, foi uma carnificina: 200 brasileiros mortos e 500 feitos prisioneiros. Do lado português, apenas 16 baixas.

Quem mais lutou pela separação foram os baianos. Não por acaso, como mostra Gomes no livro, a Bahia é o estado que mais comemora a Independência, com grande participação popular inclusive, coisa rara em outras regiões. E não o faz no 7 de setembro, mas sim, no 2 de julho, data da expulsão das tropas portuguesas de Salvador, em 1823. O livro mostra que a guerra no estado durou um ano e seis meses e envolveu 16 mil pessoas. E houve várias outras lutas regionais.

Um projeto de cima para baixo

O temor de uma rebelião de escravos era latente. Em 1821 chegou a circular no Rio um alerta de que poderia se repetir no país o banho de sangue ocorrido em 1794 no Haiti. Não tinha como ser diferente. Na época, a desigualdade social era enorme, com total concentração de renda. De cada três brasileiros, dois eram escravos, índios ou mestiços. O analfabetismo dominava, inclusive entre os ricos – só 10% da população sabiam ler. As diversas províncias viviam em total isolamento.

‘Isso tudo irrompe de forma violenta, na forma de um monte de rebeliões regionais e muitas mortes’, constata Gomes. ‘Mas como o poder tenta legitimar-se como pacificador, aglutinador, organizador, cria essa imagem de que houve um processo pacífico, muito diferente do que aconteceu.’ Na avaliação de Gomes, a ideia de uma Independência pacífica, negociada, foi criada pelo novo governo. ‘Acho que houve um esforço de suavizar, de mascarar as grandes tensões latentes na sociedade brasileira’, afirma o escritor. ‘Esse Brasil que emerge das margens do Ipiranga vem de cima para baixo, de um governo autoritário, que tenta organizar a grande confusão herdada da Colônia, com províncias isoladas e rivais, pobres, analfabetos, latifúndios, concentração de riqueza, ou seja, um país com muita chance de dar errado, de cair numa guerra civil ou étnica.’

Por tudo, conclui o jornalista, o Brasil era um país ‘improvável’. O mais natural seria que, após a Independência, se esfacelasse. E por que isso não aconteceu? ‘Acho que (a união) foi o resultado de um projeto muito bem sucedido da Coroa portuguesa no Brasil, que vem desde a época da colonização’, defende Gomes.

Para o escritor, é um erro achar que a herança portuguesa é de improvisação, atabalhoamento, gente degredada e desqualificada. Segundo ele, a ação foi muito bem organizada. ‘Desde as capitanias hereditárias, toda a ação da Coroa é sempre para manter o controle (territorial), conter invasões. Depois, também com os governadores gerais e o marquês de Pombal fortificando as fronteiras e impondo a língua’, afirma o jornalista, lembrando que até meados do século 17 a língua franca em São Paulo era o Tupi-Guarani. ‘É a Coroa que vai impondo essa noção de identidade nacional pela administração colonial, pelas leis e pela língua.’

E, após a Independência, D. Pedro I manteve a fórmula, aglutinando os interesses das elites ao distribuir privilégios e títulos de nobreza, mas intervindo com força a cada rebelião, como na Confederação do Equador, em 1824. Para Gomes, ele é um elemento de força, que impede a divisão. ‘O Brasil que herdamos hoje é fruto desse projeto autoritário, de cima para baixo, de uma pequena elite que organiza todo o resto’, resume. ‘A República tenta alargar um pouco a base de participação, mas o que se vê é uma república com prática monárquica, de general, caudilho, ditador, sempre impondo o Estado de cima para baixo.’

‘Somente de 25 anos para cá, estamos tentando criar um consenso. Hoje, temos mais educação, salário, emprego, agora temos matéria-prima para construir um país.’

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‘Tenho de ser mais cuidadoso do que um historiador’

Como transformar a História do Brasil em best-seller? 1808 vendeu 600 mil exemplares…

Laurentino Gomes – Fiz do jeito que aprendi. Sou repórter, editor, há mais de 30 anos. Só mudou o formato. Antes, eu publicava informação em jornal e revista; agora, em livro. Mas a essência é exatamente a mesma. E essa é a grande mágica que as pessoas não entendem: como um jornalista faz um livro bem-sucedido sem ter formação acadêmica de historiador? Acho que o jornalista pode tratar de qualquer assunto, com relevância e profundidade, desde que faça reportagem como deve ser feita, pesquisando muito e tendo boa orientação. O primeiro trabalho para uma boa reportagem é buscar uma fonte confiável para te orientar. No meu caso, o Alberto da Costa e Silva (diplomata e historiador).

Você fez também reportagem de campo. Refez o caminho percorrido por D. Pedro na véspera do Grito do Ipiranga. Isso foi importante, mesmo em se tratando de eventos passados há muito tempo?

L.G. – Sim, não é só o trabalho de escritório, biblioteca, é preciso ir para a rua. Fui visitar os locais dos acontecimentos porque, curiosamente, embora distante no tempo, eles guardam informações preciosas para quem tem o olhar atento. A etapa seguinte é ter a capacidade de converter todo esse grande volume de informação reunido, muitas vezes em linguagem técnica, repleta de jargão, numa narrativa acessível para o leitor médio, não especialista. Como escrevem Bill Kovach e Tom Rosenstiel no livro Os elementos do jornalismo, nossa missão é tornar o relevante irresistível.

Houve resistência por parte da academia por ver um jornalista escrevendo sobre História?

L.G. – No começo, senti uma reação muito forte, o que é natural. A academia tem um sistema interno de validação, que passa pela graduação, mestrado, doutorado. Ela valida a si própria. Aí chega um jornalista falando sobre o seu ambiente e se torna um best-seller. É normal que haja uma certa apreensão. Mas percebi que os bons historiadores leram o livro e o validaram, tive resenhas bem positivas. A resposta mais entusiasmada foi dos professores de História, a turma que está em sala de aula diariamente.

A pressão para não errar é maior? Como garantir a precisão de dados numa área que não é a sua de origem?

L.G. – Sempre soube dos riscos que corro. Como não sou um pesquisador, legitimado pelo sistema interno de avaliação da academia, isso me expõe a uma crítica mais rigorosa. Por isso, além do Alberto (da Costa e Silva), tive mais quatro revisores, sendo que um deles, a Janaína Senna, é doutora em História. Tanto que entreguei o livro em maio e só agora está saindo. Foi checado com lupa.

E havia muitos erros?

L.G. – Escrevi que a Leopoldina é uma estação de trem. Está errado, é um ramal ferroviário paralelo à Central do Brasil, coisas desse tipo. Outra que corrigi: dizia que na época da Independência, o Brasil sofria de uma recessão econômica em função da mudança do ciclo do ouro e do diamante para o café, no Sul, e do açúcar para o algodão, no Nordeste. Mas isso está errado, era um período de prosperidade econômica, depois da abertura dos portos e da criação de um mercado interno. Imagina se tivesse publicado isso? Não ia sobrar Laurentino sobre Gomes. Eu tenho que ser mais cuidadoso que um historiador.

Há trechos romanceados?

L.G. – Não, não é um romance histórico. Não é um livro de ficção. Quando digo, por exemplo, ‘Maria Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo tinha tudo que D. Pedro valorizava numa mulher, menos o fundamental, beleza e sensualidade’, estou usando uma linguagem literária, mas as informações são baseadas em fontes autorizadas. Todos os biógrafos dizem que Leopoldina não era uma mulher bonita nem sensual, embora fosse culta. Existe uma liberdade de linguagem, mas não uso elementos de ficção para preencher lacunas.