Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sob o signo da autocensura e da violência

Nem mesmo os mais duros críticos do presidente mexicano Vicente Fox negam o clima de liberdade de expressão prevalecente no país desde o início de seu governo, até mesmo para atacá-lo de forma impiedosa, às vezes desrespeitosa, em artigos e charges em jornais e revistas, em programas humorísticos na TV, em mesas-redondas no rádio, sem sinais claros ou comprovados de represálias ou advertências de setores oficiais.


O porta-voz Rubén Aguilar, em suas sessões diárias com a imprensa, não passa recibo dos ataques, insinuações e fofocas sobre o casal presidencial. E quando se vê encurralado por algum jornalista mais insistente, habilmente dá o assunto por encerrado afirmando que não vale a pena perder tempo com esse tema.


Com um rosto cada vez mais cansado e desanimado, as voltas agora com os dramáticos e custosos estragos provocados por enchentes diluvianas em seis estados, Fox tem dito e reiterado que toda essa pesada (com freqüência maldosa) carga midiática em seus ombros e os da primeira-dama, Marta Sahagún, é o preço a pagar para que os cidadãos, jornalistas, artistas e intelectuais manifestem seus pontos de vista sem medo de desaparecer na noite, perder emprego ou ter a família ameaçada – como acontecia até cinco anos atrás.


Quando recebe chumbo da oposição, Fox cita e recita essa abertura como um dos grandes ganhos de sua gestão, exclusiva de seu governo: falem e escrevam o que lhes der na telha!


Na prática, porém, essa tão cantada liberdade de expressão tem sofrido nos últimos tempos alguns sérios contratempos e retrocessos, que no fundo não dependem nem podem ser coibidos por uma ação governamental direta, efetiva. São episódios gerados pelo próprio sistema político, que embora esteja numa fase de acelerada renovação democrática, ainda funciona, sobretudo nos fundões do país, sob o comando de líderes dinossáuricos, los caciques (algo como os ‘coronéis’ do interior brasileiro), que não raro apelam para a violência mais primária como forma de se impor a adversários e inimigos, com destaque muito particular para jornalistas abelhudos.


O buraco é mais embaixo


Semana passada, no meio de duas saias-justas com o setor, Fox primeiro confessou estar ‘muito preocupado’ com as denúncias feitas na recente reunião da SIP (sigla em espanhol para Sociedade Interamericana de Imprensa), que considera a situação mexicana ‘inquietante’. Nos últimos 18 meses foram assassinados oito profissionais do ramo, além de outros desaparecidos ou seqüestrados. Tais números dão ao México a nada honrosa liderança no continente (Colômbia, Cuba e Venezuela vêm depois) no que toca à perseguição de jornalistas. Muitos deles, apavorados, já abandonaram a profissão e o lugar em que viviam, pensando na segurança familiar.


A reação presidencial, divulgada pelo porta-voz Aguilar, deixou muita gente ainda mais indócil, principalmente nas redações do norte do país, na fronteira com os Estados Unidos, onde tem ocorrido boa parte desses crimes contra repórteres, fotógrafos, editores e donos de jornais. Disse Fox: ‘Não devemos ceder, não devemos nos assustar, é preciso continuar investigando e denunciando as ações do crime organizado’.


Palavras que não comovem as famílias das vítimas e grupos de direitos humanos, revoltados com o que consideram a passividade – ou a pouca agressividade – do governo diante do descarado e repulsivo agir dos capi da droga, que não se detêm diante de nada e de ninguém. O remédio, pelo menos por agora, foi criar um novo sistema de proteção aos jornalistas, por meio de um número telefônico especial para a denúncia, e da criação de uma promotoria específica para investigar os crimes.


Na morna e burocrática declaração de Fox, bem lá no meio das frases, aparece o termo ‘crime organizado’, com toda certeza uma das chaves para acabar com os atropelos e barbaridades cometidos contra jornalistas no país. Ao contrário da época ditatorial do PRI – Partido Revolucionário Institucional, que controlou ferreamente o país durante 70 anos, hoje os jornalistas, pelo menos os dos grandes órgãos de imprensa da capital, não recebem mais telefonemas lacônicos e ameaçadores para não publicar esta ou aquela matéria ou parar de investigar algum assunto espinhoso.


Mas nos jornais do interior do país a situação é bem diferente: o tal crime organizado, na verdade constituído e movimentado pelos quatro grandes cartéis da droga que fazem e desfazem à vontade, mancomunados com los caciques locais, na maioria das vezes presidentes municipales (equivalente a prefeitos), acabam a bala com qualquer tipo de crítica ou campanha desfavorável. Não raro também o móvel dos crimes é algum tipo de velha rixa pessoal entre um jornalista e um político.


Dessa forma, jornalistas têm sido eliminados à luz do dia, fuzilados na rua, brutalmente, na frente de familiares e colegas. E quem vai sair, de peito aberto, para encarar metralhadoras fumegantes e pneus cantando, como nos tempos da Chicago de Al Capone? Crimes até agora impunes, diga-se de passagem.


Por conta do permanente clima de guerra na fronteira com os EUA, com fortes prejuízos para o turismo e os negócios dos dois lados, os mexicanos ainda precisam suportar a pressão arrogante dos vizinhos americanos, los gringos, que exigem providências drásticas de Fox e de seu gabinete para dar um fim a esse caos e terror assustadores. O narcotráfico tem sido, nos últimos 20 anos, um dos mais graves e angustiantes problemas do México. E jornalista que se mete com essa escumalha acaba no cemitério.


Censura de patrão


O outro episódio, não comentado pelo governo de Fox mas que empana o brilho de suas declarações sobre a mais ampla liberdade de expressão no país, aconteceu no quase nonogenário (acaba de fazer 89 anos) jornal El Universal: na mesma semana em que apresentava aos seus leitores uma bela e ampla reformulação gráfica, numa de suas publicações semanais, La Revista, encartada na edição das segundas-feiras, o editor-chefe Ignacio Rodríguez Reyna pedia demissão do cargo e com ele levava boa parte da redação. Motivo alegado pelos demissionários: censura crescente da direção da empresa sobre matérias mais candentes.


O jornal obviamente não disse palavra sobre as mudanças na redação – logo assumida, num procedimento de rotina, por um dos grandes profissionais da casa, o jornalista Raymundo Riva Palácio, articulista político de prestígio e credibilidade, além de atilado crítico da mídia mexicana; um nome para ninguém botar defeito.


A pergunta, porém, paira no ar: irá Riva Palácio baixar a bola justamente agora que a classe política mexicana, empenhada em feroz campanha presidencial, recheada de denuncismo barato e golpes baixos de todo tipo, fornece de mão beijada uma pauta diária e semanal da melhor qualidade, do maior interesse dos leitores e eleitores?


Em entrevistas radiofônicas, Reyna, cauteloso, num tom equilibrado, não fez tiradas antipatronais inflamadas e disse que saiu porque ele e a equipe não agüentavam mais as pressões para cortar esta ou aquela matéria. Que tipo de pressão? Bem, aí ele pega a tangente e não aprofunda, mas a julgar pelo que se comenta na praça, o problema se referia, entre outros assuntos, por exemplo, aos mandos e desmandos da primeira-dama, Marta Sahagún, hoje um dos alvos prediletos da imprensa, até mesmo por parte de jornalistas mulheres.


O que os mexicanos chamam de ‘protagonismo’ por parte de Marta, uma irresistível inclinação para aparecer ou manipular nos bastidores, há muito tempo irrita e indigna vários setores do país.


Pelo jeito, Reyna preferiu sair sem maiores ruídos, sem queixas e acusações jogadas no ventilador, gesto pouco comum na categoria, preferindo concentrar suas energias na criação de uma nova revista, com estréia prevista para janeiro. O que ele ressalta, isso sim, é que se trata de uma empresa jornalística sem dono ou patrão: os verdadeiros donos serão os acionistas, entre eles nomes de peso como o do colunista político Miguel Angel Granados Chapas.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México