Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em jornalismo e em ficção

O argentino Rodolfo Walsh (1927-1977) era um jovem autor de 29 anos que aspirava se tornar escritor de histórias policiais. Pouco se importava pela política, assunto que trocava fácil por uma boa partida de xadrez.

Isso até a ‘sufocante noite de verão’ em que, tomando uma cerveja, ouviu uma frase que o deixou perturbado: ‘Um fuzilado está vivo’.

O homem que a proferira falava do assassinato, pela polícia, de um grupo de civis ocorrido alguns meses antes, em junho de 1956.

Os homens tinham sido tomados como militantes peronistas que estariam a ponto de deflagrar um levante contra o governo do general Pedro Eugenio Aramburu. Este chegara ao poder por meio do golpe militar que derrubara Juan Domingo Perón no ano anterior.

Na operação, os policiais prenderam doze homens que estavam reunidos numa casa suburbana, levaram-nos para uma unidade policial e dali para um lixão, onde foram fuzilados sob a vigência da lei marcial que passara a valer naquela madrugada.

Só que a história era muito mais intrincada do que aparentava. E a existência de um sobrevivente deixava isso mais claro. Walsh ficou obcecado pela trama. Deixou o emprego, mudou-se para o local dos fatos e passou a investigá-los minuciosamente. Descobriu que mais seis homens estavam vivos e que aquele não se tratava de um grupo armado. Mas, sim, de um bando de amigos ou conhecidos que escutavam juntos uma luta pelo rádio.

E, principalmente, que haviam sido presos pouco antes de a lei marcial entrar em vigor, o que transformava o fuzilamento ‘justificado’ pela situação de exceção em crime comum. Os escritos de Walsh fizeram barulho. Saíram como série de reportagens em uma pequena publicação.

Em 1957, foram reunidos no livro Operação Massacre, que sai no fim deste mês pela coleção jornalismo literário da Companhia das Letras.

Com riqueza de detalhes, Walsh reconstrói a trágica noite. Primeiro monta o perfil dos envolvidos. Depois, relata como se deu a reunião e a chegada dos policiais. Segue-se a descrição de como foram levados ao lixão e da operação desastrosa. Os presos foram obrigados a caminhar iluminados apenas pela luz de uma caminhonete. Só que alguns saíram do raio de visão dos policiais e correram; outros, ainda, fingiram-se de mortos.

A polícia passou os dias seguintes tentando recapturar os fugitivos, mas já era tarde. Um dera entrada num hospital, fora preso novamente e seu pai tornara o assunto público. Outros se asilaram na embaixada boliviana.

Contos

Também no fim do mês, a Editora 34 começa a lançar por aqui os contos do autor. O primeiro volume é Essa Mulher e Outras Histórias, editado por Sérgio Molina.

O livro traz as famosas histórias irlandesas de Walsh, que, apesar de não serem propriamente autobiográficas, surgiram a partir de evocações de sua infância – Walsh era descendente de irlandeses, nascido na Patagônia argentina.

Para Molina, há uma revisão da obra de Walsh. ‘Obviamente Operação Massacre é seu grande livro, mas o trabalho de ficção, que por tempos foi relacionado à sua atividade política, vem ganhando vida própria.’

***

‘Carta Aberta’ revelou antes o que história confirmou

Luís Eblak (*)

Se Operação Massacre projetou o trabalho de Walsh, ‘Carta Aberta de Um Escritor à Junta Militar’ é uma obra documental que encerrou sua carreira e vida.

Assinado em 24/3/1977 – data do primeiro aniversário da ditadura militar argentina (1976-1983) –, o texto foi enviado para a imprensa do país e a do exterior. Expôs, com precisão incrível para a época, diversas verdades escondidas pelo governo.

Já no dia seguinte, Walsh se tornou um dos 30 mil desaparecidos daquele curto e cruel regime. Foi perseguido, sequestrado e levado para a temida Esma (Escola de Mecânica da Armada) – centro de detenção e tortura.

Incluída como anexo desta edição de Operação, a carta denuncia a repressão militar – ’15 mil desaparecidos, 10 mil presos, 4.000 mortos’ –, a prática de jogar corpos de opositores ao mar e o fracasso da economia ‘ditada pelo FMI’ – ‘400%’ de inflação.

Também citou mortes de estrangeiros relacionadas, sabe-se hoje, à Operação Condor (plano integrado de governos militares da América Latina contra opositores).

Provavelmente o descobridor de Walsh no Brasil, Marcos Faerman (1943-1999) escreveu, em Versus – jornal da imprensa alternativa que circulou de 1975 a 1979 –, que o argentino também fez jornalismo investigativo antes mesmo de esse conceito ser inventado nos anos 1970.

Explica-se: Faerman e a turma de Versus se impressionavam com o compromisso de Walsh na busca da verdade, mesmo que ela pudesse lhe custar a vida.

Na ‘Carta’, Walsh escreveu que seu compromisso era ‘testemunhar momentos difíceis’, o que Faerman chamava de ‘consciência’. ‘A consciência dói, às vezes mata’, escreveu ele após o ‘sumiço’ de Walsh. No caso da carta, ‘doeu e matou’.

‘Carta Aberta de Um Escritor à Junta Militar’ não mudou a história argentina. Repercutiu na opinião pública mundial, mas a ditadura daquele país não se tornou menos genocida do que já era. Mas antecipou coisas que a história confirmaria depois.

(*) Jornalista, Folha de S.Paulo

***

Autor inventa gênero da não ficção e abole de um golpe o realismo literário

Alan Pauls

O argentino Rodolfo Walsh não foi nem denunciador nem mártir. Foi alguém possuído por uma missão: a missão de dizer.

Alguém para quem dizer não foi uma escolha (embora Walsh seja hoje o paradigma do escritor que escolhe), nem um ofício (embora Walsh sempre tenha se pensado como um escritor profissional), nem um luxo (embora Walsh seja elegante mesmo quando escreve panfletos políticos ou informes de inteligência), mas uma necessidade compulsiva. É preciso dizer: é esse o imperativo categórico que fundamenta e atravessa toda sua obra.

Lilia Ferreyra, sua companheira dos últimos tempos, diz que nessa época Walsh ‘escrevia constantemente’: um diário pessoal, contos, cartas polêmicas, invectivas que redigia como se estivesse em transe.

Em 31 de dezembro de 1976, quando o cerco militar estava se fechando sobre ele, Walsh se sentou diante da máquina pouco antes do meio-dia e se levantou quando já se ouviam os foguetes do Ano Novo. Queria começar o ano ‘escrevendo contra esses filhos da puta’.

Grafomania

Essa grafomania está em relação direta com a morte: é preciso escrever porque o inimigo se aproxima e se acaba o tempo. Um reflexo de encurralado, sem dúvida, mas também uma extraordinária prova de confiança.

Walsh acreditava nas palavras: acreditava em seu poder de articular uma verdade e intervir no mundo, mas, sobretudo, na capacidade das palavras de sobreviver a quem as disse, de continuar dizendo mesmo quando a voz que as proferiu se tivesse extinguido. Dizer, para ele, era ao mesmo tempo testemunhar e deixar um testamento: dar prova de uma existência e afirmar, ao mesmo tempo, que não é preciso existir para dizer e que existe, inclusive, um certo dizer (o dizer político) que deixa implícito de maneira essencial, constitutiva, o desaparecimento de quem o faz.

A ideia do escritor como morto em vida e da escrita como testamento poderia ser explicada pela situação que Walsh vivia no início de 1977: um quadro dos montoneros [grupo de guerrilha urbana de esquerda, ligado ao líder Juan Domingo Perón], em retrocesso em um país ocupado por uma força repressora descomunal.

Mas esse dizer marcado pela morte é, na realidade, sua primeira descoberta científica. Em 1957, 20 anos antes de os militares de Videla o encurralarem, Walsh se vê obrigado a escrever Operación Masacre. E o que o obriga a escrever esse livro notável – que inventa o gênero da não ficção e abole de um golpe só todo realismo literário – é um elemento estranho, inverossímil: o aparecimento de um morto que fala.

Espectro

O aparecimento de Juan Carlos Livraga, fuzilado pelo exército antiperonista em 1956, que voltou da morte para contar o conto. Rodolfo Walsh descobriu seu destino de escritor quando se identificou com a figura do espectro, o ‘homem-minhoca’, o zumbi. Um mito digno de Lovecraft ou de Poe, que define a clandestinidade como a condição primeira de toda escrita política. [Tradução de Clara Allain]

(*) Escritor argentino, autor de O Passado (Cosac Naify), entre outros

******

Editora da ‘Ilustrada’ da Folha de S.Paulo