Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa ‘moral’ não é ética

Apanhemos uma frase dos milhares de opiniões que ganharam a mídia nestes dias, sobre as variadas expressões da crise que há pelo menos dez anos tolhe as possibilidades de desenvolvimento da imprensa no Brasil e dificulta o cumprimento de sua missão social. Melhor: vamos colher a manifestação, no Canal do Leitor deste Observatório, do cidadão Paulo Roberto Almeida, de Brasília, sobre a idéia de uma imprensa ‘de esquerda’ como suporte de um novo jornalismo [ver remissões abaixo]. Diz o sr. Almeida:

‘Sinceramente, o Brasil (aliás, o mundo também) não precisa de uma imprensa de esquerda, de direita ou mesmo de centro. Ele precisa de uma imprensa objetiva, ponto. Pretender qualificar a imprensa com apodos ou adjetivos que lhe ‘assegurem’ tal ou qual atributo é simplesmente renunciar ao papel que a imprensa deve ter na sociedade moderna: a grande informadora e ‘formadora’ da opinião pública, ao buscar apresentar todos os pontos de vista, todos os dados relevantes para que o cidadão bem informado possa fazer ele mesmo seu julgamento.’

Por aí, entremos num dos pontos cruciais dos debates que movem corações e mentes em torno da questão do jornalismo como prática deste momento interessante da modernidade. Existe, mesmo teoricamente, a possibilidade de uma imprensa objetiva? Ou seria a imprensa, essencialmente, uma das muitas expressões da realidade, portanto sujeita a uma diversidade de interpretações tão ampla quanto as possibilidades de apreensão dessa realidade? A eventual objetividade seria, neste momento, uma qualidade da imprensa?

Trabalhemos com o pano de fundo de uma ética, à maneira literária de Gabriel Garcia Márquez, para quem ‘a ética não é uma condição ocasional, mas deve acompanhar sempre o jornalismo como o zumbido segue o moscardo’. Antes da questão da objetividade se coloca esta condição: o jornalismo precisa, acima de tudo, ser ético. Convencionemos que a ética seja, então, o sistema imunológico do jornalismo. Perdida esta, perde-se a saúde e apela-se para o antibiótico da moralidade, que trata de sintomas para dissimular a patologia.

Expansão e livre-pensar

É disso, em última instância, que temos tratado aqui, sob os rótulos da rotina diária. Seja no noticiário político, na economia, nos emocionalismos do futebol, na questão da propriedade dos meios de comunicação, o que brota, quase sempre, é a percepção de que falta à imprensa esse sentido profundo da ética. Mesmo quando se coloca diretamente contra desmandos e sujeira explícitos, como é o caso dos escândalos que desde maio ocupam as manchetes, nossa imprensa tem contaminado seu discurso com a moralidade da ocasião, privando-nos de entender o que há realmente de doentio na nossa ordem institucional – que inclui a própria imprensa – e que nos remete periodicamente a crises de governabilidade.

Uma atitude ética teria condicionado a imprensa a questionar as causas profundas de nossas infelicidades institucionais – entre essas causas, eventualmente, a própria imprensa, com todas as suas qualidades. E não falemos apenas do escárnio que representa a distribuição de concessão dos serviços de radiodifusão a políticos e grupos de negócio travestidos de religião. Não nos esqueçamos também de que a chamada ‘grande imprensa’, aquela que nos acostumamos a representar como produtora do jornalismo legítimo, é regida pela tradição monarquista das empresas familiares.

Como tudo é expansão e contração, se pudermos convencionar como ‘esquerda’ o pensamento voltado para a mudança, a expansão e o livre-pensar, e ‘direita’ tudo que se esforça pela contração, pela consolidação e pelo controle, teremos elaborado um conceito bastante amplo e aceitável de uma imprensa de ‘esquerda’, que se informe no conhecimento científico para elaborar suas premissas. Uma imprensa assim seria capaz de produzir anticorpos contra a maior parte das causas de distorções e manipulações que hoje contaminam o jornalismo.

Louvor e coro

Assim, sabedores de que o conceito de raça sobre o qual se produzem políticas públicas é ultrapassado há pelo menos 60 anos, uma imprensa de ‘esquerda’ ajudaria a sociedade a fazer saltar a questão das diferenças de oportunidades para estágios mais realistas e mais justos do que as premissas em que atualmente se baseiam as práticas de compensação. Um pouco mais de acurácia científica nos teria poupado do fundamentalismo que cercou os primeiros anúncios de resultados do projeto Genoma. Um conhecimento básico do funcionamento do ser humano haveria de melhorar a cobertura de eventos nos quais, tão estupefata quanto seu público, a imprensa se revela incapaz de oferecer à sociedade instrumentos para a interpretação, compreensão e absorção de perdas, ajudando a minimizar ansiedades e colaborando para escolhas coletivas mais afinadas com o real interesse público.

A cobertura do fenômeno do terrorismo tem essa característica. Na economia, essa tendência faz com que se desenvolva na opinião pública, por exemplo, uma dicotomia entre o objetivo do desenvolvimento e a necessidade de preservação dos recursos naturais. Nos negócios, cresce uma idéia bastante questionável sobre o potencial da China para se alçar e manter-se na condição de grande potência mundial, ignorando-se os sintomas de pouca sustentabilidade dos regimes fechados e excessivamente centralizadores.

Na confluência da política com a economia, o leitor habituado ao louvor do liberalismo de repente ouve o coro das reprovações ao governo, que deixou os fazendeiros do Centro-Oeste contaminarem seu gado com a febre aftosa e não os protegeu de sua própria irracionalidade.

Grito de guerra

Majoritariamente alinhada com o pensamento de ‘direita’, a chamada grande imprensa tem favorecido um predomínio dos movimentos de contração e consolidação na dinâmica social, o que explica de certa forma escolhas motivadas pelo medo exacerbado, pelo individualismo ou pelo interesse de castas ou grupos – a chamada ‘sociedade civil organizada’.

Incapaz de se aprofundar nas causas da maioria dos eventos – seja pela redução e menor qualificação de seus quadros, seja por falta de interesse em ver questionados os princípios do sistema político e econômico dos quais se privilegia – a imprensa oferece suporte moral para escolhas eticamente questionáveis de cidadãos dotados de poder político ou econômico. Assim, dissimulando os males reais da sociedade, contribui para o agravamento das moléstias que fazem deste país um lugar de esperanças cada vez mais reduzidas.

O cidadão de ‘direita’ – nesse sentido que lhe emprestamos aqui – é muitas vezes vítima de sua própria covardia moral, agindo contra seus próprios interesses de preservação. Nesse sentido, observe-se, muitos cidadãos ditos e tidos como de ‘esquerda’ são a contra-face da mesma síndrome, atolados em ilusões sobre modelos de sociedade que não levam em conta muito do que as ciências sociais já demonstraram sobre a natureza humana. O cidadão conservador de qualquer matiz ideológico sempre procura se abrigar sob o manto do poder, seja no grande jornal, na repartição pública, na empresa, na política. Os incompetentes, desonestos e irracionais que conduziram o partido do atual governo ao beco em que se encontra têm essa característica.

Esse indivíduo conservador costuma esperar que se manifestem claramente as preferências do poder para, então, lançar seu grito de guerra. É o medroso que sonha com o direito de ter uma arma, mesmo reconhecendo que, no íntimo, sua covardia o impedirá de apertar o gatilho no momento crucial. Incapaz de levar adiante uma vida ética, prefere ter sempre à mão a justificativa moral para as pequenas transgressões que o fazem sentir-se inteligente.

Viés pré-fato

Um opúsculo que em português se chama Escuta, Zé Ninguém, de Wilhelm Reich (1897-1957), já tratou desse indivíduo de maneira clara e direta. Deixemo-lo aí. Seguirá arranhando o barranco da evolução até que possa deixar o pântano do lugar-comum e vislumbrar o planalto do livre-pensar e da coragem para a reflexão e o questionamento.

Precisamos de uma imprensa para aquele outro cidadão, o que se arrisca a nadar contra a corrente, o que aceita uma vida de equações e não entrega a alma por uma resposta, o que entende sua interinidade e não age como se fosse o último ser sobre a face da Terra. Esse tipo de gente existe aos milhões, mas são raros na mídia interlocutores que os respeitem.

A esse extrato social, que cruza a pirâmide da sociedade transversalmente e de cima abaixo, chamamos mercado de inteligência. O indivíduo que o personifica não se caracteriza por uma coloração partidária, mas é sempre um protagonista. Está em todos os níveis da sociedade. É um empresário que procura conduzir seu negócio com estratégias sustentáveis, é o funcionário que procura constantemente melhorar o serviço que presta, é o indivíduo que rejeita a horda.

Talvez esse leitor, esse telespectador, não esteja muito interessado em ‘objetividade’, no sentido idealista que reveste todo debate sobre jornalismo. É bem possível que ele ou ela esteja mais qualificado para extrair significados dos fatos do que imaginamos. Basta que lhe demos os fatos – em todas as nuanças possíveis, como diz o Sr. Almeida – e não tentemos lhe impingir o viés que existe antes mesmo de acontecer o fato.

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Jornalista