Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Não queimem o Alcorão, votem em Fidel

Terry Jones era um ilustre desconhecido, pastor de uma microscópica congregação pentecostal de 50 fiéis na Flórida, até que há duas semanas, inspirado pelos satanases do radicalismo político ianque, teve a infeliz idéia de anunciar a queima de exemplares do Alcorão para lembrar o nono aniversário do ataque terrorista às Torres Gêmeas de Nova York, perpetrado por ordens do fanático Osama bin Laden.


Provocou um rebuliço mundial porque a ultradireita americana, inspirada na rústica Sarah Palin, pretende incendiar o país para derrotar fragorosamente o presidente Barack Obama nas próximas eleições de novembro.


O desatino do pastor americano acendeu o desvario dos fundamentalistas islâmicos, a ira sagrada globalizou-se através das redes sociais e só não produziu uma catástrofe graças à pronta intervenção de líderes responsáveis, tanto nos EUA como no resto do mundo.


O Alcorão não foi queimado como prometeu o demente Terry Jones, mas a sociedade americana se mostrou estressada e mais fragilizada nestas eleições intermediárias (para renovação parcial do Congresso e governos estaduais) do que em 2008, durante a campanha que levou o primeiro negro à Casa Branca.


Além da justiça


Queimar livros é o primeiro passo para queimar pessoas – sentenciou em 1817 o grande poeta (e também jornalista) alemão Heinrich Heine, quando soube que estudantes nacionalistas queimavam livros de direito franceses. A ameaça de queimar o Alcorão num país que venera a liberdade de expressão não chegou a se materializar, mas é o símbolo de uma irracionalidade teoricamente incompatível com a Era da Informação.


Irracionalidade não muito diferente está apressando a fragmentação da Venezuela à medida que se aproximam as eleições legislativas de 26 de setembro. Hugo Chávez, desta vez, encontra uma oposição esquecida das diferenças ideológicas, fortalecida em torno da idéia de evitar que o país se transforme numa autocracia. O país está dividido, incapaz de estabelecer pontes e diálogos, pronto para uma ruptura.


O nível de polarização no Brasil é menor, mas nossa TPE – Tensão Pré-Eleitoral ultrapassa a de todas as eleições presidenciais desde a redemocratização, inclusive as de 2002, quando se previa uma belicosa disputa pelas chaves do poder em Brasília.


Aconteceu justamente o contrário. As regras foram respeitadas, a compostura mantida, a máquina do governo razoavelmente controlada. Nível de trepidação mínimo: tanto durante a disputa como na transição e na posse. O corpo a corpo mais forte talvez tenha sido o abraço entre os presidentes – tão efusivo que derrubou os óculos daquele que entregava o poder ao sucessor.


Mais importante: a imprensa controlou-se. Talvez porque tenha percebido que além da Justiça Eleitoral havia uma autoridade presidindo o pleito, comprometida com a sua lisura.


Onda de autocríticas


Como não havia candidatos à reeleição, tudo indicava que 2010 seria uma reprodução de 2002: não é o que está acontecendo. O jogo está pesado, o ambiente penoso. O tumor de 2006 não foi lancetado, o processo eleitoral continua contaminado por aquele tipo de ator político que o presidente Lula designou há quatro anos como ‘aloprado’. O pior de tudo: a imprensa desembestou. Onde começa o ciclo, com o ovo ou a galinha?


Não há como negar que o processo político brasileiro se radicalizou e degradou-se. Há um clima de vale-tudo que anula os efeitos objetivos e subjetivos da Lei da Ficha Limpa. Marqueteiros até então imbatíveis estão sendo substituídos por um desbragado e incontrolável populismo. As redes sociais da internet não conseguem sobressair porque este populismo irrefreável, universal e pluripartidário, tornou-as ineficazes. O sotaque caipira é irreproduzível no Twitter ou no Facebook. Propostas, mesmo as mais simplistas, não conseguem competir com o poder deletério dos dossiês, produzidos pelos estúpidos ‘grupos de inteligência’, uma aberração que nos remete aos tempos da ditadura.


Apesar deste clima de confrontação – ou por causa dele – não repercutiram as declarações de Fidel Castro à revista The Atlantic Magazine [reproduzidas na ‘Ilustríssima’ da Folha (12/9, pág. 4-5, para assinantes)].


El Comandante não está preocupado apenas com a iminência de um confronto nuclear no Oriente Médio. Suas reflexões sobre a história recente e a Segunda Guerra Mundial combinadas com as memórias da sua infância, se devidamente digeridas pela esquerda mundial, produzirão uma onda de autocríticas e talvez mesmo haraquiris. Seu puxão de orelhas em Ahmadinejad pode mudar muita coisa no xadrez mundial.


Mensagem decodificada


Embora pouco tenha falado sobre ideologias e embora a sua piada sobre o modelo econômico cubano tenha sido propositalmente truncada por ele mesmo, fica evidente que a América Latina não pode continuar submetida aos precários paradigmas intelectuais de Hugo Chávez ou de seus parceiros.


A inesperada rentrée de Fidel Castro na cena mundial deveria ser saudada com alegria e examinada senão pelos candidatos, ao menos pelos analistas da nossa cena eleitoral. Ao lembrar suas posições extremadas durante a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, Fidel não esconde que há meio século encarnava a inevitabilidade do confronto.


Agora, depois de enfrentar a morte, visivelmente de bem com a vida, o cubano aponta para os inexoráveis caminhos da co-habitação. Este surpreendente percurso político-existencial não pode ser descartado nem banalizado. Há nesta reaparição uma mensagem superior que precisaria ser descodificada e valorizada.


Quanto mais cedo, melhor.


***


No conturbado ambiente jornalístico-eleitoral ocorreu um episódio positivo, alentador, que merece registro e aplauso. A coluna da ombudsman da Folha de S.Paulo, Suzana Singer, no domingo (12/9), é uma prova de que a grande imprensa, para merecer o adjetivo, não pode se entregar às tentações oferecidas pela arrogância e a onipotência. A crítica à manchete do jornal no domingo anterior, atribuindo à candidata Dilma erros que não cometeu, contém duas enormes doses de coragem moral: da jornalista coerente, firme, e do jornal que acolheu seu contundente texto. Melhor de tudo foi a bem humorada crítica de um internauta reproduzida na coluna: ‘Errar é humano; colocar a culpa na Dilma está no Manual de Redação da Folha‘.