Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A esquerda, a direita e as ideias prontas

É inglória a tarefa de tratar de temas complexos em poucas linhas. Vejamos que o romancista Cristovão Tezza, morador de Curitiba e colunista do jornal Gazeta do Povo, da mesma cidade, se aventurou pelos caminhos da análise do que seja a tal ‘esquerda’ num curto texto, publicado na página 3 da ‘gazeta’ do dia 24 de agosto de 2010.

Ora, Norberto Bobbio, que certamente tem mais bagagem teórica para tratar do assunto, escreveu um livro inteiro para abordá-lo e, mesmo assim, ainda deixou dúvidas claras e objetivas sobre nuances relativas ao que seja a tal ‘esquerda’, conceito que ganha sentido quando comparado com seu oposto: a tal ‘direita’. Tezza, no entanto, mostrou que é ou corajoso demais ou inconsequente em excesso e resolveu, em mil e poucos toques, dar o seu pitaco.

Ele começa bem ao traçar um paradoxo relativo à origem da ‘esquerda’. Pontua que tudo começou com a oposição ao clero e à nobreza, que partiu da burguesia ascendente, a qual sentava à esquerda do rei. Tezza afirma que ‘a figura do clássico burguês, portanto, o individualista que pôs a girar a máquina do capital, é em sua origem o primeiro `esquerdista´’.

Perfeito e cristalino. Somente esse paradoxo já daria pano para mangas de diversos capotes. Tezza sugere ainda, com brilho, que a defesa da liberdade e da igualdade características da esquerda desde o seu nascimento se concretizaram, na prática, no ‘controle férreo do Estado’ que se personificou na ‘máquina soviética’. Como se o controle pudesse ser identificado como estratégia para promover a liberdade ou a igualdade. E o escritor também lembra que, apesar da tragicidade e violência das realizações concretas da dita ‘esquerda’, esta mantém sua ‘aura sagrada’.

‘Ditaduras prolongam modelos arcaicos’

O problema, como veremos, é que o próprio Tezza parece vítima dessa confusão. Em seu texto, ele resume a ‘esquerda’ à estatização e a trata com inegável deferência.

Até um ponto, Tezza vai muito bem e poderia ter apenas explorado as contradições apontadas acima para produzir um texto instigante. Mas, de repente, sabe-se lá por que motivo, descambou para o lugar-comum, utilizando ideias prontas, já previamente mastigadas, e conceitos mal formulados.

Ele diz o seguinte: ‘O sonho de uma utopia estatal provendo igualitariamente o pão e a justiça mostrou-se, na Europa, capaz apenas de criar Estados totalitários controlados por máfias político-policiais, em territórios já assombrados pelo pesadelo nazista, pelo espírito racista e por fascismos variados.’ Ora, é uma possível verdade, até porque um dos paradoxos que o autor pontuou anteriormente já remetia à falácia de confundir a defesa da igualdade e da liberdade com o controle estatal. Mas, é uma meia verdade, simplesmente pelo fato de que é uma generalização e, como toda generalização, é simplória e tosca. Pior, corre o risco de ser confundida como uma defesa do ideário da chamada ‘direita’ e, assim, de se ver invalidada enquanto tese para reflexão. Afinal, o importante não é se posicionar num polo ou outro, mas ter a capacidade de circular por ambos.

Mais adiante, mais uma generalização perigosa (e haverá alguma que não o seja?). ‘No Oriente, onde a `razão iluminista´ não chegou, as ditaduras de todo tipo apenas prolongam modelos arcaicos tribais, imperiais e religiosos que se perdem no tempo.’ Há um inegável traço etnocêntrico nesse trecho. O autor deixa revelar sua crença de que, sem as ‘ditaduras de todo tipo’ (ditaduras de esquerda, é claro), chegariam ao fim os tais ‘modelos arcaicos tribais, imperiais e religiosos’, quem sabe para que lá se implantasse o moderno, participativo e laico modelo democrático. É uma possibilidade, mas é preciso enxergar um pouco além do umbigo para refletir seriamente sobre se a tal democracia é, efetivamente, um avanço em relação aos demais ou apenas um produto de uma civilização e de um momento histórico.

Realidade é dinâmica, não esqueçamos

Outra simplificação grosseira é definir Cuba como simplesmente uma ‘ruína patética’. É nessas afirmações pouco inteligentes que o escritor trai sua incapacidade de tratar o tema com imparcialidade. Quando o assunto é Cuba, a discussão fica até parecendo debate de torcedor de futebol. Os adeptos de Cuba, enaltecem a ‘experiência cubana’, lembram dos avanços em saúde e educação etc. Os não adeptos desprezam os tais avanços e só veem ruínas por lá. É evidente que nesse debate quem sai perdendo é o bom senso.

Para resumir, Tezza começa bem e levanta contradições importantes e fundamentais. No entanto, logo depois se perde e começa a proferir ideias pouco originais e pouco inteligentes. O maior problema é, como já dito, querer se aventurar a discorrer sobre o que provavelmente não conhece com profundidade em poucas linhas. Isso, ninguém deve tentar, sob o risco de parecer patético.

Tezza provavelmente não leu o livro de Bobbio, por isso resume ‘esquerda’ a estatismo. Não consegue enxergar que há muito mais entre uma coisa e outra do que supõe sua vã filosofia. Mas, não é uma deficiência apenas sua. Muitos insistem em afirmar que ‘ser de esquerda’ é ‘defender o socialismo’ ou ‘propor estatizações’. Nem eu, nem Bobbio, concordamos com isso.

Esquerda, para nós, é um posicionamento prático, real, inserido numa sociedade, uma ação que prioriza o equilíbrio socioeconômico e a distribuição justa de riquezas. Direita, em contrapartida, é a ação ou conjunto de ações que operam no sentido da concentração de riquezas, promovendo o desequilíbrio socioeconômico que, nesse estado, acaba por fomentar ainda mais a concentração, gerando uma situação de injustiça crescente. Há momentos, assim, em que um líder, ditador ou dirigente socialista pode agir comprometido com a proposta da ‘direita’ e há outros momentos em que um empresário ou ditador ‘de direita’ pode promover um maior equilíbrio e justiça social. A realidade é dinâmica, não podemos esquecer disso.

Nitidez turva

Não é possível, também, esquecer que o tal ‘capitalismo de Estado’, que Tezza diz ser ‘uma profunda vocação brasileira desde o Império’, pode ser identificado mundialmente como um dos pilares do ‘keynesianismo’ que, por sua vez, foi a base do new deal de Roosevelt, o sistema de gestão econômica que conseguiu levantar a economia mundial depois dos desmandos do liberalismo. Não é, apenas, uma vocação brasileira. Foi importantíssimo para, digamos, ‘salvar’ o capitalismo e promoveu, segundo Hobsbawm, uma ‘idade do ouro do capitalismo’. Levando em consideração o que Tezza afirma e sabendo desses fatos históricos, pode-se, então, concluir que o Brasil foi vanguarda na passagem do século 19 para o 20.

Tezza, no último parágrafo de seu texto, confessa, para bom entendedor, sua incapacidade para refletir sobre o tema ‘esquerda’. Ele diz que Lula foi ‘o primeiro gênio populista da esquerda brasileira, que vem reduzindo a farelo a nitidez eventual que ela [a esquerda] ainda mantinha no país’. Ora, não parece ter sido a ‘genialidade populista’ do presidente que turvou a nitidez do que seja a ‘esquerda’. A noção do escritor sobre o tema é que parece ser nitidamente turva. A dele e a de muita, muita gente.

Mas, afinal, ele tinha poucas linhas. Assim sendo, e dadas as interessantíssimas contradições que levanta no início da crônica, poderia tê-las usado de forma bem melhor. Seria possível gastar as poucas linhas da crônica para discorrer sobre alguns aspectos das contradições apontadas no início. E essas contradições são suficientemente eloquentes para que pensemos o quanto muitos dos chamados ‘esquerdistas’ podem ser entendidos, no fim das contas, como defensores do sistema que combatem, simplesmente porque é a existência desse sistema que lhes dá a identidade com a qual se definem. Ou, quem sabe, é o que lhes traz sentido para a vida.

Da mesma forma, como a crônica de Tezza ilustra, podemos pensar o quanto os ‘direitistas’ mantêm uma percepção pouco realista sobre o ‘outro lado’.

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Jornalista, mestre em Comunicação e Cultura