Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

CPJ homenageia jornalista paraense



O jornalista Lúcio Flávio Pinto, repórter especializado em assuntos da Amazônia e editor do Jornal Pessoal (de Belém, PA), foi um dos quatro premiados com Prêmio Internacional da Liberdade de Imprensa, concedido pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) – organização independente, sem fins lucrativos, que se dedica a defender a liberdade de imprensa em todo o mundo. Sua entrevista:


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O que é ser premiado no topo do mundo, enquanto cá na planície a vida segue atormentada por esse nó de processos kafkianos?


Lúcio Flávio Pinto – Há uma lição de história nesse amargo paradoxo pessoal. A Amazônia sempre foi a mais internacionalizada das regiões brasileiras. Foi também a região que mais tardiamente se incorporou ao Brasil. Assim, ao mesmo tempo em que não lhe é estranha a relação internacional, a Amazônia tem pouca vinculação nacional. E vice-versa. O Brasil se internacionalizou depois, porém com mais intensidade nos últimos tempos. E se nacionalizou pouco, enquistando-se nos centros hegemônicos. Fala de um Brasil que não lhe interessa. O mundo fala da Amazônia sabendo o que lhe interessa. Há muito interesse estratégico, político, geopolítico, econômico, comercial e científico, só científico ou usando a ciência como abre-alas. Afinal, a Amazônia é um dos mais importantes centros de recursos intensivos em natureza do mundo, suprindo vários países de minérios, metais, semi-acabados e muitas outras mercadorias ainda em processo de revelação, a partir de sua fantástica biodiversidade (a marca que diferencia e distingue a região das outras partes do planeta, e que está sendo destruída).


Atento a essa dimensão, dediquei minhas energias à tentativa de descobrir, entender e difundir a atualidade amazônica aos que estiverem ao alcance da minha atividade jornalística. A tarefa ultrapassa minha capacidade profissional, mas o empenho em enfrentá-la me tem possibilitado encontrar os rastros dessa história em seus diferentes momentos e em suas várias direções. Foi assim que me tornei uma fonte de referência para pessoas participantes ou interessadas no drama amazônico, o mais fascinante que é encenado atualmente no palco da Terra. Infelizmente, a maioria desses interessados vem de fora. Estou chegando à conclusão de que nos maiores laboratórios de conhecimento e saber do mundo há a consciência e o fundado temor de que a Amazônia logo desapareça. Não na forma de inferno vermelho, como previram os americanos Howard Irvin e Robert Goodland (este se tornou meu amigo) na década de 70 do século passado, mas como uma savana, uma floresta primária, um palmeiral, uma vegetação, enfim, muito mais uniforme e pobre do que a atual. Sem sua enorme biodiversidade, portanto. Aí a Amazônia entrará para o portfólio que já abriga as áreas devastadas da África e da Ásia, suas primas colonizadas do passado.


Há os que concordam e os que discordam dessa minha visão, mas que consideram proveitoso levá-la em consideração. Fazem isso porque, independentemente da minha interpretação, raciocino sobre fatos concretos. Como jornalista, não armazeno dados setoriais. Meu campo de ação é amplo e diversificado, por atavismo profissional. Não estou entre os grandes intérpretes da Amazônia, mas acho que estou entre os que não aceitam verdades estabelecidas sobre bases irreais, fantasiosas, movediças, bitoladas por ideologias que se satisfazem em si mesmas. Construo-a sobre fundamentos demonstráveis. Esse postulado me colocou no circuito como uma fonte de referência. É esse marco sinalizador, um dentre muitos outros, mas real e ativo, que algumas instituições e pessoas decidem premiar. Entendo que querem me estimular a continuar a fazer o que tenho feito, com sacrifício e dedicação. Recebo com imensa alegria essa lembrança porque minhas apostas de futuro para a Amazônia se baseiam na possibilidade de o circuito da solidariedade do saber compensar, de certa forma neutralizar e transformar o circuito massivamente dominante, o do capital.


Como foi que seu nome chegou ao Comitê para a Proteção dos Jornalistas?


L.F.P. – A iniciativa foi do próprio CPJ. Desde a minha condenação no processo movido contra mim pelo então desembargador João Alberto Paiva, há dois anos, dois dos integrantes do Comitê responsáveis pelas Américas fazem contatos periódicos comigo. Realizaram um amplo e minucioso levantamento técnico sobre o contencioso. Tive que responder a inúmeras perguntas muito pertinentes sobre essa sucessão de 32 processos a que já respondi desde 1992, quando Rosângela Maiorana Kzan propôs o primeiro, e enviar-lhes documentos. Formaram um dossiê sobre o meu caso (ou os meus casos), que sempre estão relacionados a graves questões de ordem pública: grilagem de terras, extração ilegal de madeira, cumplicidade de autoridades com o crime, narcotráfico, lavagem de dinheiro, economia clandestina, manipulação da opinião pública, crimes corporativos, etc. Depois de dois anos de acompanhamento documentado, decidiram propor o meu nome para o prêmio deste ano, o que muito me honrou, dados os métodos criteriosos de seleção.


O CPJ sabe muito bem a quem está concedendo essa honraria. Não é uma ação entre amigos (não conheço pessoalmente ninguém de lá) nem um prêmio de fancaria. É interessante observar a qualidade dos premiados, a natureza do trabalho que realizam, sobre o pano de fundo das características da solenidade, que será realizada no famoso Hotel Waldorf-Astoria, em Nova York, com toda pompa e circunstância. O traje exigido é black-tie. Mas os premiados andam de manga de camisa, em condições extremamente desconfortáveis. Uma simbologia, ao meu ver, que lança pontes entre o Primeiro e o Terceiro Mundo.


A importância do prêmio fala por si só. No entanto, no caso da Amazônia, ele também expõe as perdas a que o front jornalístico, o jornalismo do Jornal Pessoal (apesar de, a rigor, a grana miúda do JP não permitir essa mobilização de seu exército de um homem só no front), como eu dizia, as perdas a que o jornalismo do JP está submetido, como nas outras partes do mundo onde a liberdade de imprensa vive sob ameaça, e onde igualmente o CPJ, ao mesmo tempo em que premia, expõe, denuncia. Teria sido melhor não receber o prêmio, em troca de um jornalismo que não registrasse apenas, ou principalmente, as perdas, o testemunho de uma região que não consegue deter sua destruição a tempo de escrever sua própria história?


Nos últimos anos, em que a perseguição pela via judicial se intensificou, duas coisas me impressionam profissionalmente. De um lado, o posta-restante de cada edição do Jornal Pessoal. É enorme a quantidade de assuntos que ficam pendurados na pauta porque já não tenho tempo para abordá-los. Uma abordagem jornalística, para ser completa, requer ida ao local do fato, consulta aos personagens, acesso a boas fontes secundárias e tempo para adequada análise e processamento das informações. Não tenho podido atender a todas essas etapas. Por isso não escrevo sobre certos assuntos ou faço uma abordagem limitada, principalmente dos temas imediatos, que constituem o noticiário do dia-a-dia, que antes estavam inteiramente ao alcance da minha vontade, com os meios materiais para viajar, circular, comprar material.


Por outro lado, constato, não sem tristeza, que, ainda assim, só o Jornal Pessoal divulga certas informações ou faz determinadas análises. Se o jornal desaparecer, como está arriscado de acontecer a qualquer momento, esse material deixará de chegar à opinião pública. A combinação das duas observações mostra o grau de empobrecimento da imprensa. Meus algozes sabiam bem o que estavam fazendo quando me encheram de processos, agindo nos bastidores para conseguir a adesão de magistrados e intimidar quem podia reagir e me ajudar. Fizeram recliclagem semelhante à dos matadores de índios, que antes usavam o três-oitão (pistola calibre 38) e agora usam o dinheiro, incomparavelmente mais eficiente para abater essas populações e imobilizá-las em suas terras valiosas.


Felizmente ainda há pessoas competentes, corajosas e comprometidas com a causa pública na justiça e entre a elite local. Sem elas eu talvez já tivesse sucumbido nessa guerra. Mas ela não pode ser subestimada, nem pelos que não têm simpatia para comigo. Sinto-me hoje em prisão domiciliar não declarada. Alguns poderosos gostariam que a prisão tivesse grades reais e não apenas simbólicas, de um simbolismo que vem minando minha saúde e minhas condições de vida. Gostaria que a opinião pública refletisse se essa destruição não causaria um dano à qualidade de informação da sociedade. Se chegasse a uma conclusão positiva, gostaria que a opinião pública tratasse esse caso não como perseguição a uma pessoa, uma rixa familiar, como a definiu o presidente da OAB do Pará, mas um crime de lesa-Estado. Aqui sou punido da forma mais iníqua, injusta, absurda. Lá fora, sou premiado. Não na ante-sala de uma empresa ou de um governo, mas por instituições acadêmicas e por sociedades civis sem fins lucrativos. Minha informação atende a fome mundial pela Amazônia, mas é incômoda na terra que tanto amo? Nela me resta encarar a perseguição, a prisão e o exílio?


Você vai até Nova York para receber o prêmio?


L.F.P. – Infelizmente, ainda não sei. Não tenho segurança de que, estando lá fora, não será armada contra mim mais uma armadilha judicial ou judiciária, como já aconteceu em outros momentos dessa já longa trajetória de perseguição. Numa delas, foi considerado intempestiva a apelação que apresentei contra minha condenação no processo João Alberto, quando o recurso foi protocolado rigorosamente no prazo e confirme a norma processual. Por muito pouco não perdi a primariedade nesse processo. A verdade foi restabelecida pela corte superior, o STJ, em Brasília. Mas por muito pouco a sentença não foi executada. O CPJ tem feito tudo para garantir minha presença à solenidade, mas eu próprio ainda não carimbei o convite. O mais importante, porém, já aconteceu.