Muito cuidado com os arquivos! Alguns países, com o fim de proteger os judeus que ali viviam, esconderam os arquivos, públicos e privados, dificultando – e, às vezes, impedindo – que eles fossem identificados pelos nazistas, como foi o caso do que ocorreu com a Dinamarca na Segunda Guerra Mundial.
Repousam nos arquivos verdades que precisam vir à tona e textos que precisamos interrogar. Pesquisadores sempre encontram o que nos dizer.
Há um livro imperdível na praça e não é de nenhuma grande editora. É Machado de Assis e a religião: considerações acerca da alma machadiana, publicado pela editora Idéias & Letras, de Aparecida, SP. A autora é Maria Eli de Queiroz, mineira de Araxá, professora da Universidade Estácio de Sá no campus de Petrópolis, RJ, cidade onde vive há muitos anos! Um de seus livros anteriores foi premiado pela União Brasileira Escritores-UBE, como um dos melhores romances de autoria feminina.
Ela começa com os ataques de um bispo à obra machadiana, citando desjeitosa metáfora da autoridade religiosa. Coração de pedra pode ser boa comparação, mas pode o coração gotejar? Machado de Assis tinha um ‘coração de pedra que jamais gotejou lágrimas’, escreveu Dom Hugo Bressane de Araújo, no centenário de nascimento do escritor, em 1939, ao publicar o livro O aspecto religioso da obra de Machado de Assis.
‘Estou entre Jerusalém e Manaus’
Em crônica publicada em 14 de abril de 1895, em A Semana, dizia Machado: ‘Há meia dúzia de assuntos que não envelhecem nunca; mas há um só em que se pode ser banal, sem parecê-lo, é a tragédia do Gólgota. Tão divina é ela que a simples repetição é novidade. (…) Grande é a morte de Jesus, divina é a sua paciência, infinito é o seu perdão (…).’
Na mesma crônica, depois de citar Rousseau – ‘o Evangelho fala ao meu coração’ –, Machado recomenda: ‘É bom que cada homem sinta este pedaço de Rousseau em si mesmo… Entretanto, eu admiro o belo sermão da Montanha, as parábolas de Jesus, os duros lances da semana divina, desde a entrada em Jerusalém até à morte no calvário.’
Ele estava escrevendo sobre a Semana Santa, mas confessava-se obrigado a dividir o tema da crônica com outro assunto: ‘A Semana Santa chama-se para as coisas sagradas, mas uma ideia que me veio do Amazonas chama-me para as profanas, e eu fico sem saber para onde me volte primeiro. Estou entre Jerusalém e Manaus.’
Um perfil com novos contornos
Muito se tem escrito sobre Machado de Assis nos últimos anos e devemos a outro professor, Mauro Rosso, da PUC do Rio de Janeiro, a descoberta de contos machadianos inéditos que ele descobriu em arquivos particulares e em jornais de Petrópolis, depois de lançada a bela coleção da Nova Aguilar. Recomendo o livro de Maria Eli Queiroz e também Contos de Machado de Assis: relicários e raisonnés (Editora da PUC e Edições Loyola).
Se Mauro Rosso fez um trabalho de Sherlock Holmes, descobrindo inéditos de Machado de Assis, Maria Eli de Queiroz saiu à procura do catolicismo do grande escritor e dele encontrou provas abundantes, mudando radicalmente o que se dizia de Machado até então. A maioria dos críticos e biógrafos viu nele o ceticismo de corte inglês. E a afilhada do escritor, Francisca de Bastos Cordeiro, relata que ele recusou os sacramentos de confissão e da extrema-unção (hoje com o nome de unção dos enfermos). Daí a controvérsia sobre seu ateísmo.
Mas, momentos antes de morrer, segundo testemunharam Euclides da Cunha, José Veríssimo e Raimundo Corrêa, entre outros, Machado disse: ‘Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará.’
Foi em frestas como esta que Maria Eli de Queiroz encontrou com sagacidade, não apenas indícios, mas provas de que Machado de Assis não era ateu. Isso não o diminui nem o engrandece, mas engrandece a autora, que contribui para que o perfil de Machado tenha novos contornos, como, aliás, acontece também depois que lemos Mauro Rosso.
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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras