“1. Este jornal tem dado notícia do julgamento de um homem que alegadamente se fazia passar por mulher para seduzir outros homens com quem se relacionava através da Internet e que é acusado de exercer chantagem e intimidação sobre as pessoas que decidiam romper esse relacionamento. Um dos textos sobre o caso, publicada no passado dia 9 de Junho, suscitou a ‘perplexidade e indignação’ do leitor Carlos Fabião, que diz não conseguir ‘descortinar que relevância ou pertinência tenha para o caso’ a referência ao facto de o acusado ser, como se lia nessa peça, ‘um docente da Universidade de Évora’.
O leitor questiona: ‘Que têm as instituições ou empresas a ver com os comportamentos desviantes e os eventuais ilícitos criminais dos seus funcionários?’. E argumenta que ‘em nenhum momento se diz que as práticas [do arguido] se tenham desenvolvido a partir da Universidade ou com recurso a meios da instituição, e nada indica que os alvos do assédio fossem estudantes ou outros funcionários da Universidade’. O facto de, na sua opinião, ‘a natureza dos alegados crimes praticados [ser] particularmente sensível’ e poder ser confundida com o ‘aliciamento de jovens’ através da Internet, contribui para que a ‘reiterada referência’ à ‘relação laboral’ do acusado com o estabelecimento de ensino alentejano possa afectar negativamente a ‘imagem da instituição’. A reforçar esse possível efeito, ‘chega-se ao extremo’ — acusa — ‘de ilustrar com uma fotografia da Universidade de Évora a notícia sobre o julgamento do indivíduo’.
A jornalista Paula Torres de Carvalho, que tem acompanhado o julgamento e redigiu a notícia em questão, rebate os argumentos do leitor: ‘ A prioridade, neste caso, era contar a história sem identificar os arguidos, mas dando o máximo de informação e de contextualização dos factos em julgamento. O que me obrigou ao recurso mais frequente do que o desejável, reconheço, à referência da profissão do principal arguido e onde a exerce. A verdade é que o caso tem a relevância – e o interesse informativo – que tem, precisamente por envolver quem envolve (…). E sendo um professor universitário, a obrigatória precisão dos factos narrados (…) não dispensa essa explícita referência’. Quanto à fotografia, admite que ‘a escolha não foi a mais feliz, embora resulte da decisão de não se publicar imagens da pessoa em causa, contrariamente ao que outros jornais fizeram’.
A relevância do acompanhamento noticioso deste julgamento resulta da invulgaridade dos crimes de que o principal arguido é acusado, e dos meios de que se terá servido, mas também da imputação, que lhe é feita pelo Ministério Público, de ter contratado detectives privados — que por sua vez recorriam aos serviços remunerados de elementos da PSP e da Polícia Judiciária — para vigiarem as vítimas e colaborarem na sua intimidação. Detectives e polícias são, aliás, arguidos no mesmo processo, como foi noticiado, e Paula Torres de Carvalho recorda esse facto para questionar: ‘Acaso os inspectores da PJ igualmente envolvidos neste processo judicial, e assim identificados, co-responsabilizam minimamente a instituição Polícia Judiciária?’.
Numa notícia como esta deve procurar-se o equilíbrio entre o respeito pela presunção de inocência, evitando identificar os arguidos, e uma descrição eficaz e inteligível dos factos que conduziram à acusação, bem como do seu contexto, o que não só justifica como aconselha a referência a elementos de caracterização dos protagonistas. Julgo que a jornalista adoptou, nesse plano, uma solução acertada. Poderá considerar-se que a referência à Universidade de Évora seria dispensável, bastando caracterizar o arguido como docente universitário e residente naquela cidade. Mas nem essa referência é ‘reiterada’ (aparece uma vez no texto de 9 de Junho e não surge na peça dedicada à sessão seguinte do julgamento, publicada a 23), nem me parece susceptível de causar dano à imagem da escola.
Questão diferente é a da fotografia. A escolha de uma imagem daquela universidade para ilustrar a notícia não me parece justificável. Nada acrescenta ao texto e pode ser vista como um envolvimento abusivo da instituição num caso a que é alheia, como sugere o leitor. As condicionantes gráficas da edição do PÚBLICO (neste caso, a escolha de paginar esta notícia num espaço que prevê uma fotografia) não podem servir como argumento de facilidade para justificar o erro. Neste caso, deveria ter-se procurado uma solução aceitável para a ilustração (fotográfica ou não) ou prescindido dela.
2. Curiosamente, o tipo particular de assédio sexual que terá dado origem ao julgamento anteriormente referido foi um dos temas de actualidade que motivou Paula Torres de Carvalho a escrever um texto intitulado ‘O lado negro e dividido do sexo’, publicado no caderno P2 da passada segunda-feira, e que provocou reclamações em que volta a estar em causa — embora não só — a edição fotográfica.
O artigo propõe-se retratar ‘as pessoas que sofrem de perturbações sexuais designadas por parafilias’, através de uma conversa com o psicanalista Carlos Amaral Dias. A autora optou por escrever um texto com citações do entrevistado (único, neste caso), e não por uma entrevista propriamente dita (perguntas e respostas), pelo que não podem ser atribuídas ao psicanalista todas as afirmações (e juízos) que compõem a peça. Mas é referida a sua preferência pelo termo ‘perversão’ para englobar num mesmo conceito — e essa ideia perpassa por todo o texto — qualquer tipo de práticas sexuais menos convencionais, independentemente da sua natureza e da sua legitimidade jurídica e moral.
Contra isto protestou a leitora Paula F. (que se identificou devidamente, mas pediu que não fosse aqui referido o seu apelido), considerando que o artigo é marcado pelo ‘preconceito (…) quanto a sexualidades alternativas’ e contribui para ‘desinformar’, nomeadamente ao ‘juntar num mesmo conceito fetichismo e pedofilia’. Na sua opinião, ‘o erro mais grave está claramente na associação entre uma imagem de conteúdo sexual entre adultos que consentem e um texto que todo ele fala de parafilias e interacções não consensuais, inclusivamente com crianças, ou seja um texto que fala sobre criminosos’. A fotografia em causa parece mostrar-nos (digo que parece porque nem tudo é visível) uma mulher sentada sobre as costas de um homem ajoelhado e de mãos no chão, equipado com a parafernália própria da cenografia sadomasoquista, em nada sugerindo o que a leitora designa por ‘interacção não consensual’. Paula F. considera que ‘a inserção de uma fotografia que nada tem a ver com o texto é ofensiva para quem tem práticas sexuais’ menos convencionais.
No mesmo sentido se pronunciou, dias depois, outro leitor devidamente identificado e que não quis ver citado o seu nome. Também ele considera o artigo do P2 ‘atentatório dos direitos individuais de muitos cidadãos’, por estar orientado para considerar desviante e criminosa qualquer prática sexual que fuja à norma’, e ‘[meter] no mesmo saco ‘o sadismo, o masoquismo, a pedofilia, o exibicionismo ou o voyeurismo’’. E também ele vê na fotografia que ‘remete para uma cena de sadomasoquismo’ uma escolha abusiva para ilustrar uma peça em que, afirma,’todos os casos concretos referidos são criminosos ou patológicos’. Este leitor critica ainda outra opção de edição fotográfica, a da capa do P2 que remetia para o texto de Paula Torres de Carvalho, escrevendo que aí se ‘faz mais outra generalização abusiva, colocando uma stripper e o título ‘Quando as disfunções sexuais deixam de ser segredo’’. ‘Quererá o PÚBLICO’ — interroga — ‘dizer que as strippers e/ou os seus clientes também sofrem de disfunções sexuais?’.
Face à crítica da primeira leitora, a autora da peça, que explica não ter ‘a mínima responsabilidade’ na escolha das fotografias, defende que se trata de um ‘equívoco total’ de quem entendeu que ‘o trabalho deveria ser antes sobre sexualidades alternativas’, quando se tratou de ouvir ‘um dos especialistas mais conhecedores’ para ‘uma explicação acerca de comportamentos’ como, entre outros, o do acima referido professor. A sua posição, porém, não é consensual na redacção do PÚBLICO. Bárbara Wong, editora do P2, considera que o texto ‘deveria estar escrito [em forma] de pergunta/resposta (…) a Amaral Dias’, para tornar clara a responsabilidade pelas opiniões expendidas, mas defende a escolha da fotografia contestada, já que ‘transmite uma [das] práticas’ referidas no artigo. E a Vanessa Rato, também editora, ‘pareceu problemático (tal como à leitora) tratar de igual forma fetiches e crimes’, não vendo ‘razão para que o jornal se colasse à opinião questionável (…) de um único profissional, devendo cruzar vozes com distintas posições sobre o tema’.
No pouco espaço que me resta, gostaria de salientar que, na minha opinião, os leitores têm neste caso toda a razão. Ainda que motivado pelo caso do professor que se fazia passar por mulher, o texto publicado no P2 propõe-se abranger, e não propriamente a propósito, um universo muito mais largo e mistura de facto, por opção ou por falta de clareza, certas preferências sexuais menos convencionais e práticas criminosas, ignorando a distinção básica que separa o sexo consentido entre adultos do mundo do abuso e do crime. A própria terminologia clínica ou moral utilizada (‘perturbações’, ‘disfunções’, ‘perversões’), ao abranger indiscriminadamente todas essas situações, indica falta de rigor, e esta torna-se ainda mais patente pela escolha das fotografias, na qual é possível ver alguma cedência ao sensacionalismo.
Suponho também — mas deixo essa questão aos especialistas — que certas opiniões que a leitura do texto sugere serem as do psicanalista ouvido não corresponderão a um consenso científico actualizado, e penso que Vanessa Rato tem razão quando diz que deveriam ter sido ouvidos outros profissionais. Em suma, a noção do serviço a prestar aos leitores — independentemente, já agora, das suas preferências sexuais ou dos olhares que tenham sobre preferências alheias — deveria levar a que se esperasse melhor de um trabalho do PÚBLICO sobre um tema culturalmente controverso.”