É preocupante a recente informação dada por Macarrão ao juiz José Mattos Couto, da 1ª Vara Criminal de Jacarepaguá, no Rio, de que o goleiro Bruno tentou o suicídio duas vezes no presídio de Bangu 2, usando uma corda de lençóis para se enforcar. É ainda mais preocupante saber que se trata de um preso não condenado, réu inconfesso de um crime não esclarecido pela ausência de sua materialidade. Causa-me arrepio imaginar o fim prematuro do principal suspeito do misterioso desaparecimento de Eliza Samudio.
Culpado ou inocente, Bruno é o protagonista dessa história maluca. Ele assumiu uma função estratégica na geografia do crime ao ser acusado pela polícia de ser o mentor intelectual da trama. É ainda o provedor dos demais envolvidos e o que mais tem a perder – dinheiro, juventude de novo-rico, ídolo da maior torcida do Brasil, futuro brilhante que se esvai na mesma proporção que chega a tristeza pela privação da liberdade.
A indefinição do caso afeta a credibilidade da justiça, da polícia e da imprensa. A população tem que ser bem informada sobre tudo o que vem ocorrendo nesse episódio dantesco que projetou policiais e rendeu dividendos para os meios de comunicação. Muita gente faturou – e ainda fatura – em cima desse caso, mas até agora ninguém informou direito a sociedade em qual sepultura está enterrada Eliza Samudio e qual o número de matrícula dos presos condenados no júri popular pela sua morte.
‘Não tem coragem de matar um passarinho’
Ora, se não há corpo na cova e nem gente condenada, como especular culpas? Especula-se sobre os indicadores financeiros, os folhetins televisivos e os prognósticos esportivos, mas não se pode brincar de culpado prendendo suspeitos que mofam no xadrez sem um julgamento justo.
Aliás, está virando moda no país a condenação prévia. Tempos atrás, vi a arquiteta Adriana Villela – acusada pela polícia de envolvimento na morte de seus pais, o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), José Guilherme Villela, a mulher dele, Maria Carvalho Mendes Villela, e a empregada, Francisca Nascimento da Silva – algemada no local onde ocorreu a chacina em setembro do ano passado.
Vejo a algema como uma coleira que se coloca em um cão bravo. Além de não constarem no inquérito provas diretas da culpa da arquiteta no crime, não há na sua vida pregressa nenhum ato de violência explícita que explique tamanha brutalidade. Pelo contrário, é voltada para ações humanitárias. Não falo isso sem elementos probatórios. A experiente jornalista Conceição Freitas, minha ex-colega de trabalho no Correio Braziliense, escreveu sobre isso recentemente. Uma outra colega de Brasília, de um senso crítico raro, minha amiga de três décadas, também se disse surpresa com a possibilidade, ainda que tênue, de Adriana ter matado os pais. ‘Adriana não tem coragem de matar um passarinho’, comparou a minha amiga.
‘Ouvir falar’ ou ‘ouvir dizer’ é igual a zero
Não estou afirmando que Adriana é inocente porque não estava no local do crime. Defendo a tese de que a polícia tem que trabalhar com todas as hipóteses de um crime, com coerência e contundência, descartando possibilidades e aumentando-as, conforme o apurado, até chegar ao suspeito. Na minha modesta avaliação, o que a polícia tem contra Adriana é muito pouco diante do mínimo necessário para acusá-la de ser a autora do crime, prendê-la e algemá-la, como ocorreu, antes de seu julgamento justo.
A literatura criminal revela que os crimes passionais e/ou domésticos são mais fáceis de serem esclarecidos, exatamente porque o criminoso é levado à inexorável reação de seu senso moral e a revelações imprudentes. Ou seja, as razões de sua autoria antecipam aos fatos. Se fosse Adriana a criminosa, a sua família não estaria do seu lado, os seus amigos não estariam tão convictos de sua inocência, a polícia não encontraria muitas dificuldades para a reprodução simulada dos fatos e as provas estariam em evidências. Afinal, já se passaram vários meses do ocorrido e o que se apurou contra a arquiteta são conjecturas de pouca valia. Nada de concreto.
Ainda sobre a antropologia de um suspeito inconfesso – o fato real e o projetado –, escrevi no meu livro A Justiça dos Lobos – por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus (para ilustrar o fato de que a polícia não levou em consideração o meu passado de repugnância ao crime ao me acusar de ter matado a minha mulher) o seguinte verso encontrado em Fedra, de Racine:
‘Jamais se viu no mundo a tímida inocência / passar subitamente à extrema incontinência / um dia só não faz de um mortal virtuoso / um pérfido assassino, um infame incestuoso’
Entendo a culpa como uma operação matemática. É pura ciência exata. Na dúvida sobre o resultado, aplica-se o dispositivo de presunção da inocência. Na justiça, qualquer soma de ‘ouvir falar’ com ‘ouvi dizer’ é igual a zero. A soma de crime de morte sem corpo ou provas contundentes da destruição deste também é igual a zero. Ou estou errado?
Condenação prévia
A matemática jurídica nos recomenda o envio ao Tribunal do Júri de problemas solucionáveis em questão de horas. Os indícios de culpa devem ser inquestionáveis, para que os jurados possam apenas definir o tamanho da punição moral. Afinal, tiveram as autoridades o tempo necessário para entender que o resultado seria a culpa, por isso houve a transferência dessa responsabilidade para o Conselho de Sentença.
Infelizmente, não é isso que temos visto, principalmente quando o caso ainda está sob a responsabilidade da polícia judiciária. A tragédia dos Villela, por exemplo, virou um teatro grego de humor negro. É mais um crime de versão única legitimada por boa parte da imprensa que trabalha apenas com a convicção policial. É muito aplauso para pouco questionamento.
Já no caso Eliza Samudio, a cena pulou do 1º ato, o da localização do corpo – nunca encontrado –, para o da condenação prévia dos suspeitos, deixando a plateia sem saber se bate palmas, pela comicidade da peça, ou se chora pela sua dramatização. Até porque, se for verdadeira a informação de Macarrão de que Bruno está querendo se matar, estamos diante de um crime à beira da morte.
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Jornalista