Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carta capital a um jornalista do futuro

Prezado Jornalista,

Escrevo-lhe do Brasil, cidade de São Paulo, em meados de setembro do ano de 2010 (a caminho da sagração da primavera). Peço-lhe o máximo de paciência [a prosa será por demasiado extensa], cuidado, ponderação e desprendimento ao ler esse depoimento/testemunho. Intuo que um calendário, na parede à sua frente, registre um ano qualquer na segunda metade desse século 21. Certamente, se tomar como parâmetro a realidade dos tempos que você vivencia aí, aquilo que chamaria grosseiramente de ‘übermídia’, achará absurdos, inacreditáveis mesmo, os fatos que passarei a lhe narrar. Mas, asseguro-lhe, trata-se da mais pura verdade (a tal ‘factual’).

Estou seguro de que o seu ‘olhar épico’ propiciará um julgamento e uma visão mais equidistante e reveladora dos dias difíceis que vivemos por aqui. Remeto-lhe esta mensagem com a esperança de que zele para que parte da história da imprensa seja contada de forma a que esteja preservada a verdade dos fatos, como eles ocorreram realmente; para que não prevaleça apenas a versão deturpada daqueles que chamamos de ‘donos do poder’ [ver Raymundo Faoro].

Aqui, nos dias que correm e, em verdade, desde sempre, os principais veículos de comunicação pertencem a cerca de meia-dúzia de famílias [sim, por incrível que pareça tal oligopólio existe e, o que é pior, ainda é permitido]. Dá para você imaginar o que disso resulta em termos de controle e manipulação da informação? Compreendo ser difícil você ter a mais remota ideia do que essa realidade que vivemos hoje significa [algo aos seus olhos tão distante, extemporâneo, atrasado, estapafúrdio e espúrio], mas…

‘Novas’ realidades e ‘novas’ lógicas

Digo-lhe ainda outra [impropriedade]: os proprietários desses veículos são aqueles aos quais esses mesmos meios deveriam fiscalizar. Grandes empresários e/ou parlamentares são donos [ou sócios majoritários] dos principais jornais, revistas, redes de rádio e televisão e suas retransmissoras – até portais de internet. Já pensou no absurdo dessa situação?! Ou seja: a raposa no encargo de tomar conta do galinheiro. Impensável, não?

Esses veículos trabalham em sintonia e em rede. ‘Claro! Como consequência do avanço da tecnologia das comunicações’ – exclamaria você, inocentemente. Não propriamente, esclareço. A ‘sintonia’ e a ‘rede’ funcionam aqui com o seguinte significado e fim: todos os veículos, mancomunados, em ‘sintonia fina’, transmitem de maneira massiva a mesma versão dos fatos e, claro, só os temas e notícias que interessam à preservação do status quo. Estão todos a serviço dos conservadores de sempre, aqueles que querem manter as coisas exatamente como estão; os que defendem o estabelecido [os já citados ‘donos do poder’].

Captou a nuance da coisa? Tentando ser ainda mais claro: quando eles desejam se ver livres de algum ministro ou alto funcionário do governo que está atrapalhando seus negócios e interesses, ou mesmo se livrar de algum membro do partido desse governo (ou de um partido aliado do governo), ou ainda, em última instância, quando querem/desejam derrubar o próprio presidente, começam a ‘operação bombardeio’. Exemplo de caso: um determinado veículo [por exemplo, a revista Veja, cuja tiragem já foi de um milhão de exemplares, hoje, caindo, na casa dos oitocentos mil] dá como matéria de capa um suposto escândalo contra determinado integrante da máquina pública. Então, na sequência, o principal noticiário da rede de televisão [o Jornal Nacional, da Rede Globo – audiência também cadente] dá a notícia com pompa e circunstância. Em seguida, quase sempre de modo simultâneo, todos os demais veículos esquentam e repercutem essa matéria até transformar aquele ‘suposto’ escândalo num fato consumado. Com esse ardil, aprenderam a forjar ‘novas realidades’ ou ‘supra-realidades’, bem como ‘novas’ lógicas e linguagens, muito semelhantes à ‘novilíngua’ e ao ‘duplipensar’ [ler 1984, de George Orwell].

Tem escândalo para toda hora

Um dos dois maiores jornais daqui de São Paulo [com circulação em todo o Brasil], tamanho é o seu parcialismo às escâncaras que foi recentemente ridicularizado, em escala global, com piadas e mensagens sarcásticas no Twitter [foi trending topic com cerca de 50.000 mensagens postadas!]. Ou seja: exagerou tanto na dose que se tornou motivo de zombaria na rede. Sobre esse veículo pesquise os seguintes termos ou expressões: ‘ditabranda’ e ‘ficha falsa da Dilma’. Veja a que ponto seus editores chegaram, a que nível baixaram! É de estarrecer.

Porém, reitero o devido registro, talvez até por se utilizarem desses artifícios antiéticos, capciosos, esses veículos estão perdendo, a cada dia, mais e mais leitores, condenados que estão ao descrédito – e, você bem sabe, a credibilidade é o maior patrimônio intangível de uma empresa de comunicação. A falta de credibilidade certamente os conduzirá, de modo célere, à bancarrota.

Peço-lhe desculpas, pois sei que falo sobre coisas que há muito deixaram de existir aí no seu tempo: revistas, jornais, televisão, Veja, Rede Globo etc. Imagino que aí, na segunda metade do séc. 21, a internet holográfica (em 3D) e a blogosfera sejam as principais fontes de informação. Por aqui ainda vivemos a expectativa desse auspicioso ‘porvir’. Mas a blogosfera já se insinua como a ponte que nos auxiliará nessa grande e instigante travessia.

As redações dos grandes veículos da mídia, nos dias de hoje, têm, como se fossem supermercados, um verdadeiro estoque de falsas denúncias. Metaforicamente falando, são prateleiras e mais prateleiras onde estão dispostas, e muito bem organizadas [por partido, por grupo de interesse, por esfera de governo (federal, estadual e municipal), por cargo na hierarquia governamental etc.], denúncias diversificadas, ‘escândalos’ variados. Tem escândalo para toda hora e ocasião.

O mau-caratismo começou a prevalecer

‘Mas não é exatamente essa a função dos jornalistas: vigiar governos, instituições e fazer denúncias?’ – ponderaria você, com legítima razão. É verdade. Mas o ‘demônio’ se esconde nos detalhes – como se diz por aqui. O problema é que os grandes veículos nos dias de hoje só fazem denúncias contra os partidos desse governo que aí está, de um perfil e estrato mais popular, e nenhuma crítica ou denúncia para valer contra os partidos das elites conservadoras, que desejam a todo custo e meios retomar o poder. Outra: a maior parte dessas denúncias é nitidamente falsa ou manipulada; muitas delas são ‘plantadas’ pelas máfias da política e da imprensa, algumas são grosseiras ‘armações’. Acredite no que lhe digo.

Quem são/eram os ‘fornecedores’ dessas denúncias ardilosas? Os jornalistas compactuavam/aceitavam esse estado de coisas? São perguntas mais do que legítimas, óbvias, e sei que você as está formulando nesse exato instante. Com relação aos fornecedores, num dado instante, houve uma deturpação do chamado ‘jornalismo investigativo’. Jornalistas passaram a se utilizar dos serviços de estelionatários e ‘arapongas’ [inclusive ex-agentes da época da ditadura] que, por sua vez, se utilizavam de métodos similares aos utilizados pelas máfias – foi aí, tudo indica que, o jornalismo se irmanou ao crime e começou a cair em desgraça.

Já sobre o silêncio e cumplicidade, tenho uma teoria, pois testemunhei inúmeros casos: basta dar a um jornalista trinta, cinquenta e até cem mil ‘dinheiros’ [converta à moeda da sua época] de salário por mês que esse indivíduo, como num passe de mágica, se transforma e passa a falar com a voz do chefe e a pensar com a cabeça do patrão. Os demais, os ‘focas’ ou os jornalistas ‘proletários’, são, quase sempre, pessoas honestas, decentes, mas nada podem fazer por medo de perder o emprego (têm muitas bocas a alimentar – daí utilizar-me do termo ‘proletários’). Em face disso, creio, o mau-caratismo começou a prevalecer.

Acredite se quiser

Tem também a questão do ‘mensalão’ da mídia [‘mensalão’ – rótulo que a grande mídia deu a esquema de caixa 2 dos partidos da base aliada ao atual governo]. Mas esse tema requer uma outra carta.

Sei que você deve estar pensando que tudo isso é absurdo, vergonhoso e se indagando como é possível que jornalistas e cidadãos em geral se submetessem a esse estado de coisas. Saiba que, para mim, é deveras constrangedor confessar-lhe que vivi nesses tempos de vergonha e infâmia. Porém, informo-lhe, apenas para registro, por mais incrível que isso possa lhe parecer, quando reclamávamos disso (perante o Congresso e as instituições) éramos estratégica e maliciosamente rotulados de ‘stalinistas’, de ‘inimigos da democracia’, e de que estávamos cometendo um atentado contra a liberdade de imprensa; redarguíamos, tentávamos explicar, incessantemente, diuturnamente, que estávamos indo em verdade, não contra, mas a favor desse ‘princípio dos princípios’ – de nada adiantavam os nossos argumentos. Assim tentavam nos calar e impediam qualquer tentativa de democratização dos meios, ou mesmo qualquer embrionária iniciativa que visasse a esse fim.

Veja bem, o que buscávamos era exatamente uma imprensa livre! Livre por princípio. Livre das sombras, das amarras e dos ditames dos interesses escusos dos patrões e seus grupos de pressão. ‘Utópicos’, ‘idealistas’, desejávamos exatamente uma imprensa livre, libertária e comprometida apenas com a verdade factual e a serviço de todas as classes [com ênfase, claro, nos desassistidos e nos trabalhadores]; a serviço do homem, enfim. Acredite se quiser, mas, como disse, é a pura verdade.

Desculpe-me ter me utilizado de excessivo número de caracteres nessa comunicação. Ainda somos demasiadamente ‘prolixos’ e pretensamente ‘literários’. Saudações de tempos pretéritos.

Lula Miranda

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Poeta e cronista