Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Obsessão de sobra, questionamento em falta

As coisas, no mundo, são diferentes. Primeiro, faz-se um estudo das necessidades de transporte de pessoas e mercadorias. Avalia-se então que tipo de transporte será mais adequado, dos pontos de vista técnico, econômico, ambiental: hidroviário, rodoviário, aéreo, ferroviário, uma combinação de alguns deles. Não há possibilidade de transportar minérios por via aérea, por exemplo. Aqui no Brasil é mais simples: alguém tem uma idéia, uma obsessão, e poder para tentar realizá-la. Bola pra frente: vamos direto de trem-bala (um modo de transporte que, por exemplo, não existe nos Estados Unidos). Um bom trem convencional, que rode a cem, cento e poucos quilômetros por hora, não serve: tem de correr muito, que esta é a nossa Pátria Grande, abençoada por Deus e bonita por natureza. Preço? Besteira: a gente acaba conseguindo pagar. E, como nossos meios de comunicação estão entre os mais bonzinhos do mundo, ninguém questiona tecnologia, oportunidade, conveniência, custo. Pensar em custo é coisa de pobre. E a imprensa, como não é pobre, não perde tempo com mesquinharias.

É por isso que temos uma ferrovia que transporta minério em alta velocidade – e o minério, este colunista pode assegurar, é sossegadíssimo, não tem a menor pressa para chegar a seu destino. Alta velocidade significa raios de curva maiores, desníveis mais suaves, trilhos e dormentes especiais, preços bem mais altos. É por isso que queremos o trem-bala sem saber se o trem-bala é mesmo a melhor solução para ligar São Paulo ao Rio. Mas, se fosse só isso, até que seria menos ruim. Duro é saber que na China estão construindo uma ferrovia moderníssima, ligando Qinghai ao Tibete, furando as montanhas do Himalaia, e a previsão de custos é de uns 10%, ou pouco mais, do nosso tal trem-bala, com traçado dez vezes maior. A maior parte da linha já foi concluída e funciona muito bem. Este colunista certamente fez uma pesquisa falha, mas não encontrou grandes matérias em nossa imprensa sobre a tal ferrovia – um tema do mais alto interesse num país que está perto de gastar mais de US$ 30 bilhões no trem-bala. Saiu num portal de Internet, há tempos, e em revistas técnicas, destinadas a quem trabalha no ramo. Nada para o grande público.

A ferrovia chinesa atravessa montanhas do Himalaia a cinco mil metros de altitude – os operários tiveram de usar roupas especiais, com máscaras de oxigênio e câmaras pressurizadas. Para permitir a migração dos antílopes, boa parte dos trilhos é elevada. Cerca de 25% do comprimento da ferrovia se apoia em solos congelados no inverno e derretidos no verão, o que gera problemas de contração e dilatação. E o custo? Incluindo a parte que ainda será gasta, US$ 4,1 bilhão.

Logística, transporte, modais, todos esses são temas áridos para o noticiário geral. Mas 30 bilhões de dólares não são um tema árido. Por que deixar a discussão para mais tarde, quando o dinheiro tiver sido gasto e os eventuais erros já não puderem ser corrigidos?

Ah, antes que este colunista se esqueça, a obra ficou pronta um ano antes do prazo previsto.

 

O país dos faraós

Não muito longe da praia, entre Santos e Rio de Janeiro, há trechos de uma estrada moderna, cobertos pelo mato. Ali foi construída uma das pirâmides do Brasil-Grande: a Rodovia Rio-Santos (não a que é utilizada hoje, mas a que se imaginava bem melhor do que esta). Saiu cara, não foi concluída, está abandonada. É ali que há uma novidade mundial: túneis sem o competente morro por cima. Como não houve estudos suficientes, os túneis foram construídos e os morros deslizaram, deixando aquele tubulão de concreto no meio do caminho.

Por falta de estudos, também, boa parte da Transamazônica teve de ser refeita. Pequenos córregos passavam por baixo da estrada, em bueiros. Quando chovia, os pequenos córregos viravam enormes rios e levavam a estrada junto.

Em compensação, todos os estudos foram realizados para construir algo absolutamente desnecessário: ferrovias para transportar minério em alta velocidade.

Obras desse tipo levaram o economista Mário Henrique Simonsen a um de seus pensamentos mais brilhantes: em certos casos, sairia mais barato pagar logo a comissão e dispensar a obra. O país ganharia muito com isso.

Simonsen, que foi homem de governo, foi capaz de fazer essa crítica. Hoje, os meios de comunicação foram apanhados na armadilha da pergunta errada: querem saber se haverá superfaturamento, uma pergunta que nem deveria ser feita porque já se sabe a resposta. Mas não perguntam se a obra é ou não necessária, nem quais as alternativas. Uma obra errada pode ser construída da maneira mais econômica e honesta que não deixará de ter sido um sorvedouro de dinheiro público.

 

Nosso rico dinheirinho

Os deputados federais João Ananias, Rogério Carvalho, Saraiva Felipe e Célia Rocha viajam entre 3 e dez de agosto à Inglaterra e à França, “para conhecer seus sistemas de saúde”. Se nossos meios de comunicação não fossem tão bonzinhos, alguém teria informado os nobres parlamentares a respeito de uma tal de Internet, que tem todas as informações de que necessitem e, com certeza, muito mais do que conseguirão colher sozinhos. A Internet só tem dois problemas: nela não se faz turismo (nem se recebe a diária) e não é possível trazer as encomendas.

 

Cultura inútil

Qual a nacionalidade de Rubinho Barrichello? E de Ayrton Senna? E de Felipe Massa? Todo mundo sabe? Então, por que, em todas as reportagens sobre automobilismo, seja na TV, seja no rádio, seja nos jornais, seja na Internet, informa-se que Barrichello é brasileiro, que Massa é brasileiro?

O pior é que muitas vezes a informação vem errada. O empresário Kia Joorabchian, por exemplo, nasceu no Irã. Mas é cidadão britânico. Law Kim Chong, tantas vezes apontado pela Polícia como o maior contrabandista do Brasil (foi preso e o contrabando, a propósito, continua igualzinho, e ganhando até novos espaços), é chamado de “chinês”. Não é, nem nunca foi: nasceu em Hong-Kong, parte do Império Britânico, e é portanto cidadão britânico por nascimento. Hoje, Hong-Kong faz parte da China, mas quando Law Kim Chong nasceu não fazia.

Na verdade, são informações que, corretas ou não, não informam nada. Se Law Kim Chong é chinês, brasileiro, coreano, francês ou inglês, não faz a menor diferença em suas atividades. Interessava saber que o banqueiro Salvatore Cacciola era italiano porque, por esse motivo, não podia ser extraditado para o Brasil (e só o foi quando cruzou a fronteira e foi preso em outro país). Mas, tirando os poucos casos em que a informação é relevante, o resto é besteira.

 

A flecha lançada

No final de 2010, a campeã mundial dos três mil metros com obstáculos, Marta Domínguez, foi acusada de doping. Os jornais de seu país, a Espanha, foram fartos de noticiário sobre o tema. Agora Marta foi inocentada. E a imprensa foi muito mais econômica: excetuando-se o tradicional Marca, que tinha dado a acusação na primeira página inteira e deu a absolvição no mesmo espaço e local, o fato mereceu menos espaço, menos destaque, menos repercussões. Lá, como cá, é muito mais cômodo destruir reputações do que admitir posteriormente que se estava errado.

 

A palavra proferida

Um caso semelhante ocorre agora no Brasil: o tiroteio sobre o jornalista Roberto Cabrini, que ficou preso dois dias, há três anos, por transportar em seu carro papelotes de cocaína, foi muito maior do que o reconhecimento de sua inocência, agora. A Corregedoria da Polícia Civil reconheceu oficialmente que Cabrini foi vítima de um flagrante forjado, armado por policiais e um delegado.

A notícia foi dada, sem dúvida; mas onde está o esforço para descobrir quem foi o mandante, com que objetivo, a que preço? Onde foi obtida a cocaína que colocaram em seu carro? Reportagem policial não é transcrição de acusações feitas por promotores amigos e amparadas nos documentos por eles fornecidos: é investigação, é gasto de sola de sapato, é utilização de fontes. Ou reportagem policial é assim ou se transforma apenas em máquina de moer reputações alheias.

 

Os censores

Não bastou a abertura de inquérito contra o jornalista Allan de Abreu, do Diário da Região, editado em São José do Rio Preto, SP: o Ministério Público pediu também abertura de inquérito contra a TV Tem, afiliada local à Rede Globo. O motivo é o mesmo: jornalista e TV divulgaram informações protegidas por segredo de Justiça. Acontece que, conforme já decidiram os tribunais superiores, quem é obrigado a guardar o segredo de Justiça são os agentes públicos e as partes envolvidas no processo. A imprensa não tem nada com isso. Tanto o jornalista quanto a TV certamente serão vitoriosos e a tentativa de censurá-los será derrubada nas instâncias superiores. Quem move os cordéis dos indiciamentos também sabe que não tem razão – mas quer incomodar seus desafetos e puni-los apontando-os à opinião pública como suspeitos de crimes.

 

Como…

De um release da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo:”DHPP resolve 30 % das resistência seguida de morte”Pouco depois, alguém notou alguma falha no release e mandou outro:

“VALE ESTE – DHPP resolve 30 % das resistência seguida de morte”

Pelo jeito, a falha não era “as resistência seguida de morte” – até porque, conforme aquele famoso livro, reclamar da barbaridade é preconceito linguístico

 

….é…

De uma jovem que está concluindo a tese de doutorado no Exterior, que publicou sua queixa contra plagiários num grande blog noticioso:

“Com um plágio, ele obteu o título e ostentou-o por anos a fio, até ser descoberto”.

 

…mesmo?

De um grande jornal, de circulação em todo o país:

“Ameaça de bomba em aeroporto faz Rio buscar cães farejadores de helicóptero”.

Imagina-se que, quando um cão farejar um helicóptero, a bomba automaticamente se desativará.

 

Mundo, mundo

Gretchen casa ou não casa?

Segundo metade da imprensa, Gretchen vai se casar pela 15ª vez, com seu personal trainer, Alexandre Mangueira. E, querendo deixar tudo em cima, decidiu trocar a prótese dos seios. Segundo a outra metade, a dançarina marcou mesmo a plástica, preparando-se para o novo enlace. Entretanto, mudou de idéia no caminho: vai fazer a plástica mas já não pretende casar-se.

Vai casar ou não vai? Bom, não é pelos meios de comunicação que poderemos ter certeza.

 

E eu com isso?

Fukushima, no Japão, gera (ou gerava) energia elétrica. O terremoto seguido de tsunami criou uma gigantesca situação de risco. Mas que fazer? O mundo precisa de eletricidade. Sem eletricidade abundante, como poderíamos captar e divulgar notícias como essas?

** Miss Mundo Holanda tem sutiã roubado durante concurso

** Glenda Kozlowski curte sol na praia de Ipanema

** Pippa Midleton usa jaqueta duas vezes e recebe crítica injusta

** Latino circula com namorada em shopping carioca

** Seu Jorge compra carrão

** Mirella e Ceará trocam carinhos em loja no Rio

** Cerveja das falsas tchecas começa a ser vendida no Nordeste

** Marina Ruy Barbosa e Klebber Toledo são flagrados juntos

** MG: Vereadores fazem audiência para discutir regra de futebol

Pois é: em Juiz de Fora, a Câmara discutiu “o direito de o torcedor de futebol ter o jogador substituído em caso de expulsão”. A discussão é fantástica: as regras do futebol não são criadas por Governo nenhum, por Câmara nenhuma, mas pela International Board. A opinião de Suas Excelências, os Nobres Vereadores, não tem a menor importância para a International Board.

 

O grande título

Comecemos com a piada pronta:

** Brasil quer importar cérebros estrangeiros, diz Mercadante

Claro, claro: os grandes cérebros internacionais estão loucos para utilizar nossos moderníssimos centros de pesquisa, ultra-equipados, cercados por equipes de professores brasileiros motivadíssimos, com altos salários. Mas de uma coisa eles não poderão se queixar: em poucos lugares do mundo encontrarão organismos governamentais tão aparelhados como os nossos.

Podemos prosseguir pela área política:

** “Boy” de Pagot representa ministério e tem gabinete no Dnit

Parece complicado. E é: um cavalheiro que nem é funcionário, e que a turma que foi afastada diz que é “uma espécie de office-boy”, embora trabalhando sem salário, na verdade tem gabinete próprio no Departamento e já representou o ministério em reuniões. Talvez tenham se enganado: não é o boy, é O Boy.

Temos aquele título esquisitíssimo:

** Paraquedista cai em SP após falha de equipamento

E este colunista, que pensava que todo paraquedista caísse, mais ou menos rapidamente!

E, finalmente, o grande título:

** Projetos unem públicas e privadas

Não é um retrato do país?

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]