Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

A imprensa conspira? Desconfie dos profetas

Existe realmente o PIG, Partido da Imprensa Golpista? Os petistas – seus aliados e porta-vozes – não têm dúvida: existe e age a todo vapor. Mas só conseguiram provar até agora (o que não é pouco) que os principais órgãos da imprensa brasileira não gostam de Lula e nem do PT, que preferem José Serra a Dilma Rousseff, que são conservadores e elitistas, e que defendem acima de tudo seus interesses corporativos. Mas ninguém apresentou uma prova da ação desses veículos de comunicação para romper a ordem legal no patrocínio das suas idéias, que contêm alguma dose de preconceito e má-fé. A democracia é suficientemente elástica para incluí-los na ordem legal como grupos de pressão, agindo às claras ou nos bastidores.

Golpísta, sem dúvida, foi O Estado de S. Paulo no combate ao governo de João Goulart. Seu diretor responsável, Júlio de Mesquita Filho, participou das conspirações que visavam a deposição do presidente constitucional do país. O segundo Mesquita na direção do grande jornal paulista se viciara no combate à margem da lei por causa do antagonismo extremado com o getulismo, antes e depois do Estado Novo (1937-45). Mas a virulência do famoso editorial que ele escreveu (‘Instituições em frangalhos’) contra a edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, mostrava-o já do outro lado do balcão, de onde não mais retornou. A partir do ano seguinte, seu filho e sucessor na direção do centenário jornal, Júlio de Mesquita Neto, faria sua a resistência da redação às garras totalitárias do regime militar. Foi um dos períodos mais gloriosos da imprensa brasileira, glória feita de muita persistência e alguma coragem.

Enquanto o dono do Estadão se envolvia na relação promíscua com os militares e civis golpistas da década de 1960, o jornal de maior influência política na época, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, mesmo à margem das tratativas conspirativas, foi quem deu a senha para a derrubada do presidente e a adesão da classe média aos usurpadores do poder, com dois editoriais sucessivos (‘Basta!’ e ‘Fora!’), escritos por um jornalista de esquerda.

Tanto quanto os Mesquitas, os Bittencourt – então reduzidos a Niomar, mulher de Paulo, sucessor do fundador da empresa, em 1901, Edmundo – defendiam idéias, algumas delas, não sem certa ironia, semelhantes às do governo de Jango. O Correio também queria as reformas de base, mas depois de cumpridas as formalidades previstas em lei, incluindo a aprovação pelo Congresso Nacional e não por um golpe de mão do chefe de Executivo. Depois do comício de 13 de março de 1964, o jornal se convenceu, com sinceridade, que Jango queria criar um confronto para assumir plenos poderes, tornando-se um ditador. Iria tentar o golpe no qual Jânio Quadros fracassara, três anos antes.

Imprudência e irresponsabilidade

Se o Correio da Manhã estava certo ou não, é a face controversa da questão. Que se pronunciou pelo afastamento do presidente convicto de que era a única maneira de prevenir o golpe por cima, não há mais dúvida alguma. A maior parte da elite da redação do jornal era de esquerda. Foram esses jornalistas que conduziram o maior jornal que a República teve até hoje para a reação aos militares, a partir do segundo dia do golpe.

Contaram com a inexperiência e síndrome de heroísmo de Niomar Moniz Sodré Bittencourt para colocar o jornal em confronto aberto com o governo forte (e apoiado majoritariamente pela classe média e o povo em geral). O mesmo aconteceria, sob outras circunstâncias, com a Folha do Norte diante do coronel Jarbas Passarinho, no Pará (depois o jornal, com a morte do seu chefe lendário, Paulo Maranhão, passaria ao extremo oposto, mas já como caricatura do que fora, pronto para morrer).

Esse radicalismo infantil conduziu o Correio direto aos rochedos e ao naufrágio, com direito à tradicional fuga dos ratos antes de a nau adernar para o fundo da memória nacional, de onde nunca mais emergiu, para infelicidade da cultura brasileira. Não estava escrito nas estrelas que semelhante destino era inevitável diante de um governo forte, mas cheio de escrúpulos udenistas, como o do marechal Castelo Branco e mesmo o do seu companheiro de armas, Costa e Silva, o segundo presidente-general (o posto honorário de Castelo e vários outros, inclusive o que dirigiu a Folha do Norte nos seus estertores medíocres, foi extinto por excesso de demanda, mas não de qualificação).

Um pouco mais de realismo e de boa fé teriam permitido ao jornal contornar os perigos sem trair seus ideais, sobrevivendo às intempéries da época. Foi assim que o Estadão se comportou a partir do momento em que Júlio Neto assumiu o leme e estabeleceu o contraste com o pai conspirador. Colocou o jornal nos trilhos do profissionalismo, tendo como norte a busca da verdade, ainda que sujeita a todos os graus de variações em função da dinâmica cotidiana e dos miasmas editoriais da empresa.

Por isso se impôs ao respeito até dos inimigos. Nunca acatou a presença do censor estatal na redação, mas não pediu que ele se retirasse. Fez o que era certo: o combateu sem descanso. Quem acabou cedendo foi o governo militar, já no consulado do general Geisel. Em 1975, foi ele que tomou a iniciativa de retirar o censor. Era um presente ao centenário do jornal, que suspirou aliviado, mas não bateu palmas. Era seu direito voltar a assumir a plena responsabilidade pelos seus atos. O Correio da Manhã só não partilhou esse momento por imprudência e irresponsabilidade de alguns dos seus condutores, que queriam fazer história pessoal, não coletiva.

Mais recursos

Por acaso trabalhei nos dois jornais, efemeramente no Correio e muito mais no Estadão. Neste, durante grande parte da intervenção da censura. Como muitos outros na empresa, não tive gestos de heroísmo (daqueles que, depois, permitem o descanso do guerreiro, que viria a ser remunerado – imoralmente – já sobre as cinzas da ditadura), mas não cometi a menor das indignidades. Nem mesmo a de vergar a coluna para saudar o patrão (conforme a curvatura, sujeitando o acólito a exibir as partes pudendas ao distinto público).

Tive conflitos com a direção e seus prepostos, algumas vezes levados ao limite do rompimento. Em alguns saí perdedor, noutros venci. Tive que engolir certas matérias publicadas no jornal que considerava inverídicas ou tendenciosas. Mas vibrei ao conseguir dar à luz reportagens que contrariavam frontalmente não só o pensamento mais íntimo da ‘casa’ como suas manifestações explícitas, através de editoriais. Foi o caso da série de reportagens sobre conflitos de terras na Amazônia, que só saiu depois de passar pelo crivo de um censor interno. Felizmente, o que decidiu a parada foi a capacidade dos litigantes em demonstrar sua verdade. A nossa foi maior do que a do oponente.

Vários livros já foram escritos sobre O Estado de S.Paulo. A meu ver, nenhum reproduziu satisfatoriamente a complexidade do funcionamento do jornal e da sua relação com o poder e a sociedade. Não tenho a menor dúvida, entretanto, que a história desse período se empobreceria se o Estadão não tivesse existido ou fosse conduzido a um falso destino e sucumbisse por não se ajustar ao campo de batalha. Na luta diária com a censura, bem ao nosso lado, aprendemos muito: a apurar melhor as informações, a escrever nossos textos de tal maneira que eles pudessem passar pelo crivo do censor sem se desnaturar (embora muitas vezes perdendo em clareza), a sermos responsáveis, a avivarmos nosso compromisso com o leitor e até mesmo a nos tornarmos maleáveis, sem perder de vista qual era o inimigo. E continuar a combatê-lo, sempre.

Com o fim da censura estatal, vários dos princípios adotados em conjunto – tanto pela empresa quanto pelos seus funcionários – se diluíram ou foram esquecidos. Há menos empenho pela verdade do que antes, mais condicionantes e uma profunda autocensura. As redações se encolheram, se submetendo mais docilmente às ordens pelo risco da perda do emprego valioso. Ou então adotaram um espírito sindical e corporativo, que reduz o horizonte de visão e estreita as margens da atuação.

Com todos esses problemas, é melhor ter a atual imprensa do que vê-la sujeita a novos, mais sutis e não menos poderosos mecanismos de interferência – e mesmo de intervenção – do governo, sempre um macaco em loja de louças quando se trata de apurar o grau de liberdade em sociedade – e as manifestações do espírito humano.

A chamada grande imprensa continua a abusar do seu poder e a tentar conduzir a opinião pública para onde lhe interessa, mesmo que não seja através dos fatos e da verdade. Mas hoje as formas de denunciar essa conduta são mais amplas, imediatas e convincentes do que nunca – e estão ao alcance do cidadão médio. Não é a ausência de meios de expressão que surpreende, mas a dificuldade que esse cidadão médio enfrenta para dar conteúdo à sua manifestação.

Reportagem negligenciada

A internet é um alto-falante como jamais houve igual pelo seu poder de alcance e de convencimento, além da instantaneidade do seu efeito. A potência do meio, porém, contrasta com o raquitismo da mensagem. Blogs e sites são tecidos através de adjetivações e sentenças, mas lhes faltam fatos, argumentos e até mesmo razoabilidade.

A revista Época, por exemplo, integrante do PIG por sua dupla condição de filiada às Organizações Globo e à Folha de S. Paulo (sócia da Globo no diário Valor Econômico), foi acusada pelos ‘anti-piguismo’ de golpe baixo numa matéria sobre o passado da candidata do PT na luta armada contra o regime militar. Os exemplares da revista acabaram rapidamente nas bancas e livrarias por conta dessa propaganda involuntária.

Li a reportagem e sua continuação na edição seguinte. Nada encontrei que pudesse justificar o tom de indignação dos adeptos de Dilma Rousseff. A matéria se enquadra na boa técnica jornalística: fatos apurados, narrativa correta, versões acolhidas. Claro que a revista, pró-Serra, destacou sua própria interpretação dos acontecimentos. A imprensa existe também como órgão da opinião pública. Suas informações, entretanto, podiam fundamentar interpretação oposta à dela.

Pode-se encontrar elementos de aproximação entre Época e Veja, mas uma leitura comparativa das duas revistas mostrará que elas estão muito longe de formar um todo homogêneo, compacto, monolítico. Época melhora em qualidade jornalística. Veja só tem piorado. Não porque seja menos ‘serrista’. Simplesmente por informar menos, com menos dados concretos e mais adjetivação na linguagem. Suas matérias costumam virar editoriais pouco conspícuos quando trata de temas políticos, eleitorais, ideológicos e até culturais. Um contraste enorme com a Veja de anos atrás, que não era menos conservadora do que agora.

Só um fanático haverá de considerar como gêmeos O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo. O problema não é ideológico, ou não é esta a questão principal: é técnico. Mesmo quando experimentava sua iconoclasta aventura esquerdista, a Folha não era confiável nos dados. Tinha diversidade de opiniões, o que ajudava o leitor a também opinar, mas era carente de reportagens boas, daquelas que contribuem para se informar suficientemente bem para julgar melhor. Hoje, que deu uma volta de 360 graus às origens, a Folha não ficou melhor.

Até melhorou quanto à parte opiniática. O que piorou foi a reportagem. O mesmo aconteceu com o Estadão. Só que um dos últimos patrimônios da grande folha dos Mesquita ainda é refletir com nitidez e consistência a opinião da plutocracia paulista. Pode-se e deve-se discordar dos editorais do Estadão. Lê-los, porém, é um aprendizado como poucos sobre a sociedade brasileira – e sua história.

Edição leviana

Receber os boletins do Grande Irmão é o pior que pode acontecer. Nunca houve imprensa digna do nome no chamado ‘socialismo real’, o único que existiu na prática até a queda do muro de Berlim, em 1989. A liberdade não tem sobrevivido ao dia seguinte das revoluções, com ênfase nas socialistas.

O socialismo é a meta por excelência dos sonhos de igualdade dos povos, mas não conseguiu dar uma boa resposta ao desafio da oposição. Sua tendência dominante é esmagá-la, sob os mais generosos e altissonantes pretextos (como os de Leon Trotski na revolução bolchevique). Aí começa a tirania, que pode ser mais duradoura do que as de direita e não ter o fim adequado.

Para que não haja novas desilusões, deve-se resistir à tentação de condenar os críticos e adversários só porque não partilham a nossa opinião. Sustentar um campo – se não neutro – objetivo, no qual as partes possam dialogar e medir forças com as armas da razão, com argumentos, através da demonstração da verdade. Não com tacapes e rasteiras.

Esse território só existirá – ou só se manterá – com plena liberdade de expressão e uma imprensa sem peias, exceto as dos cidadãos, sem a interferência do leviatã estatal. A imprensa continua repleta de vícios e erros, muitos deles graves, como o de editar levianamente as cartas dos leitores e desprezar o direito de resposta, além de não quebrar a cadeia dos elos corporativistas. Mas essa invenção do PIG é para puni-la ou extingui-la pelos seus acertos. Ainda que poucos, necessários à democracia, planta tão frágil neste país sempre autoritário.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)