Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ampliação da “dupla porta” na saúde pública

A imprensa pouco tem noticiado assunto da maior importância para quem acredita que vivemos em um Estado de Direito, baseando-se todas as ações na Constituição do país. Refiro-me a uma questão básica da saúde.

Como já é muito bem sabido, desde que os constituintes aprovaram artigo na carta magna de 1988 declarando que “saúde é dever do Estado e direito do cidadão”, criou-se o sistema público universal de acesso a todas as formas de prevenção, diagnóstico e terapêutica na área de saúde, o conhecido SUS. A lei que o regulamentou deixou algumas perguntas no ar, especialmente no que tange à distribuição de verbas entre os poderes federal, estadual e municipal – e declarando que a participação da iniciativa privada na área pública de saúde é complementar, não podendo substituir a mesma. Como opção, para quem pode pagar ou tem esse benefício em seu emprego, há o sistema de saúde suplementar, os conhecidos planos de saúde ou convênios. Recentemente abordei algumas questões relativas a isso aqui mesmo no Observatório da Imprensa, no artigo “O mundo público invade o privado”. Na ocasião, me debrucei sobre o tema por conta de matéria da Folha de S.Paulo que relatava a chamada “dupla porta” ou “dupla fila” no Hospital das Clínicas.

Eis que nesta semana o governo estadual paulista faz aprovar lei que determina que os hospitais públicos de São Paulo, gerenciados pelas organizações sociais de saúde (OSS), passem a atender pacientes particulares e cobrem tais atendimentos dos planos de saúde.

Lista referencial

Ora, a Constituição brasileira é claríssima nesse sentido e em meu artigo anterior já esmiucei alguns dados técnicos e jurídicos relativos a esse descalabro. Em entrevistas à mídia dadas pelo governador Geraldo Alckmin e pelo secretário estadual da Saúde, Giovanni Cerri, os mesmos declaram formalmente que não haverá diferença de tratamento, acomodações etc. entre beneficiários do SUS e aqueles oriundos de convênios. A “única” diferença é que os pacientes do SUS, para serem atendidos em hospitais estaduais, terão que ser encaminhados por uma Unidade Básica de Saúde, enquanto os provenientes de planos de saúde poderão ter seu atendimento feito diretamente em tais hospitais. Ora!

A experiência de aguardar em muitas ocasiões meses para agendar uma consulta em uma UBS é assunto antigo. E quando há o encaminhamento destas de um paciente para hospital público, salvo emergências, as demoras são impressionantes. Como é então que o atendimento não terá diferenças entre os SUS-dependentes e aqueles que provêm de convênios, se os últimos podem marcar diretamente seu atendimento, e logicamente isso ocorrerá mais rapidamente? Diz a citada lei que não poderão ser atendidos mais que 20% de pacientes particulares nas instituições públicas e, nas entrevistas, os responsáveis negam que haverá “dupla porta”. Mas a experiência do Incor, depois de todo o HC, comentada no artigo anterior, não deixa margem a muitas esperanças quanto a essa ampliação do público usuário de hospitais estaduais ocorrer de modo diferente, com óbvia preferência aos convênios. E quem possui plano de saúde pode ser atendido em uma lista referencial de hospitais privados, vários, que mudam apenas de acordo com o tipo de plano de saúde quanto à qualidade e “grife” dos hospitais.

Denúncia cabe à imprensa

Agora, além de já terem declarado a incompetência para fazer a gestão da saúde, entregando os hospitais estaduais para as OSS, que usam dinheiro público e não prestam contas a ninguém do que fazem com o mesmo, vão ampliar a participação da iniciativa privada na rede pública? Os que dependem apenas do SUS certamente vão sofrer, e mais uma vez a Constituição é rasgada.

Volto a comentar, como fiz em meu artigo anterior, que não vejo movimentações do Ministério Público e as entidades de classe e de defesa do consumidor pouco podem fazer. Alckmin é médico; mesmo provavelmente tendo exercido pouco a profissão e se dedicado mais à política, foi deputado constituinte e certamente esse assunto não lhe é estranho. O professor Giovanni Cerri, pessoa por quem tenho admiração como profissional e docente competente, não observa o perigo e a ilegalidade que isso representa?

E essa questão não é crítica apenas a tucanos. Do PSDB ao PT, todos os partidos parecem compartilhar dessa visão das coisas e, ao deixar de lado os preceitos da Constituição, afastam-se de seu dever como gestores públicos, o sempre tão propalado apelo à atenção que dão às questões sociais e da saúde ficam de lado e a população desprotegida nada consegue fazer. Como já admoestei anteriormente, parece que o papel de fiscalização e denúncia caberá apenas à imprensa, pois só ela parece ter o poder para fazer com que coisas aconteçam. Políticos são sensíveis a matérias e editoriais na mídia – e principalmente se entrarem em ação as redes sociais. Que se cumpra então essa meta de uma vez por todas!

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[Celio Levyman é médico, mestre em Neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro e ex-diretor do Cremesp]