A monarquia hoje subsiste melhor quando se vê desprovida de todo poder efetivo e, em compensação, carrega forte poder simbólico. Isso começou com a rainha Vitória, da Grã-Bretanha. Quando subiu ao trono, em 1837, a monarquia estava no seu ponto mais baixo. Não fosse ela, pode ser que as Ilhas Britânicas tivessem adotado o regime republicano. Seu tio, que governara de 1811 a 1830, deixara péssima reputação moral. O que fez Vitória, graças a conselheiros hábeis? Retirou a coroa da política. Investiu na vida em família. Ela e o marido, o príncipe Alberto, se tornaram modelos da decência. A imagem de uma realeza que reúne todas as virtudes da vida burguesa e se afasta dos conflitos políticos garantiu enorme estabilidade ao país, então mais poderoso do mundo.
Assim sucedeu com a maior parte das monarquias hoje respeitadas – basicamente, as europeias e a japonesa. Nos países árabes, a realeza é ditatorial; na Tailândia, quase. Mas no Reino Unido, na Espanha, Escandinávia, Bélgica, Holanda e algumas outras nações, a monarquia consegue respeito porque é símbolo da unidade. A diferença fica por conta dos partidos políticos. São regimes fortemente democráticos porque sabiamente dosam a parcela necessária de unidade nacional – com uma família real, ducal ou o que seja – e a parte imprescindível de conflito e diferença, esta a cargo dos partidos.
Como todo simbolismo, este deita raízes numa ilusão. Mas é uma ilusão produtiva. Nas repúblicas, há o risco de que a competição eleitoral, mesmo respeitando-se a legalidade e a decência, divida a sociedade. Vivemos isso no Brasil, nas últimas eleições gerais. Apesar de termos disputas livres para a Presidência desde 1989, de contarmos com um ramo do poder judicial especializado em assuntos eleitorais e de os candidatos não representarem opções abissalmente opostas entre si, o fato é que o país viveu um clima apocalíptico. Ora, em monarquias constitucionais, ainda que as paixões se acirrem, há um ponto de convergência em torno de um simbolismo que é nacional: o rei é chefe de Estado, enquanto os líderes eleitos são chefes de governo. O poder eleito pode até extinguir a monarquia, se assim o quiser, mas prefere mantê-la, porque confere estabilidade às instituições.
Sob bombas
Mas não basta querer para ter isso. Quando houve nosso estranho plebiscito sobre monarquia ou república, em 1993, alguns defensores do regime monárquico mencionaram essa sua qualidade estabilizadora. Mas isso não se introduz a frio, como um elemento de engenharia política. Monarquias que funcionam devem sua eficácia à história do país, na qual de algum modo desempenharam um papel importante. Tomemos alguns exemplos, além do britânico.
A Espanha: Juan Carlos foi o sucessor preparado pelo ditador Franco, um dos piores déspotas do século XX – mas o príncipe, uma vez coroado, liquidou o legado fascista. E em 1981, quando um coronel ensandecido tentou um golpe de Estado, o monarca acabou com a farra indo à televisão defender a democracia. Já na Bélgica, cujo rei Leopoldo III se rendeu aos alemães em 1940 e colaborou com os ocupantes, uma longa crise se sucedeu à libertação do país, só acabando quando o rei abdicou. Talvez por isso, ainda hoje a monarquia belga não contribui para resolver o problema da unidade nacional de seu país. Em suma, são respeitados os reis que o merecem; os infames, não.
Num livro que cedo se tornou clássico, A Invenção das Tradições, organizado por Eric Hobsbawm, o historiador David Cannadine – certamente o melhor estudioso atual da monarquia britânica – mostra como os rituais “antigos” da realeza, na verdade, são recentes. Basta pensar nas carruagens, que é o que mais nos impressiona nas cerimônias monárquicas: há pouco mais de um século, eram veículos normais de transporte. Muito da propalada antiguidade monárquica data mesmo do século XIX – desse período em que Vitória retira a monarquia da política e a consolida na moral.
Mas mesmo isso não foi fácil. Alguns monarcas não souberam arcar com o pesado fardo que Vitória legou. Seu filho, Eduardo VII, que reinou de 1901 a 1910, ficou notório por seus casos amorosos. Mais tarde, Eduardo VIII abdicou do trono para se casar com uma americana divorciada e se tornou o duque de Windsor, personagem do jet set internacional e nada mais que isso. Esse breve rei simbolizou, para muitos, o homem que tudo sacrifica por amor; mas sabe-se, hoje, de seu egocentrismo (e de sua mulher), de sua ambição e, pior que tudo, de sua simpatia pelo nazismo.
Em compensação, os dois reis George – o V, que reinou durante a Grande Guerra, e o VI, que sucedeu ao irmão para reinar durante a II Guerra Mundial – desempenharam muito bem o papel de monarcas. O filme “O Discurso do Rei” (2010), de Tom Hooper, mostra o custo que teve, para George VI, assumir o trono quando o irmão renunciou para se casar com Wallis Simpson: ele era gago. Nada previa que ele reinasse, ou sua filha, a rainha Elizabeth II. Mas ele, a mulher e as filhas ficaram em Londres ao longo de todos os bombardeios nazistas e seu exemplo fortaleceu o esforço de guerra de um país que, por mais de um ano, aguentou sozinho o tranco da máquina de guerra alemã. Não foi pouco. Segundo sua mulher, a Rainha Mãe, que morreu em 2002 aos 101 anos, isso abreviou sua vida (por isso, ela nunca perdoou o duque de Windsor).
Bases sólidas
Mas, após esses períodos quase heroicos, a realeza entrou em forte crise, especialmente naquele que Elizabeth chamou o “ano horrível” de 1992 – quando seus filhos Andrew, Anne e Charles se separaram de seus cônjuges. A sociedade sentiu que os príncipes, longe de colocarem a vida pessoal em segundo plano para cumprir seus deveres – pelos quais são regiamente pagos -, queriam o melhor de dois mundos: dinheiro e prazer. A monarquia moral de Vitória entrava em colapso, e a rigidez do príncipe Philip – que vemos no belo filme A Rainha (2006), de Stephen Frears – não conseguiu enquadrar a família; talvez só tenha piorado as coisas.
Mas a esperança está na nova geração. É verdade que o príncipe Charles, que se tornara impopular depois que sua mulher, Diana, disse que o casamento deles era “a bit crowded” (que havia uma multidão na relação, aludindo ao amor dele por Camila Parker-Bowles), recuperou o respeito nos últimos anos. Mas, sobretudo, muito se espera do príncipe William. Ele é filho de Diana, que foi uma mãe amorosa e parece tê-lo formado num molde mais moderno. Vive com a namorada há anos, de modo que sumiu a mística da virgindade da noiva. Parece que a ideia de uma família real moralista e casta – que seu pai e tios não conseguiram sustentar, porque se tornou deslocada em nosso mundo – está dando lugar à de um casal que se conhece e se ama. E ele pode ser o próximo rei. Elizabeth II, se for longeva como a mãe, poderá sobreviver ao filho – ou Charles poderá herdar o trono, mas por poucos anos. O casamento que agora se celebra pode ser tão midiático quanto o de Charles e Diana, mas se faz em bases novas e mais sólidas, para os noivos e para a instituição monárquica.
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Professor titular de filosofia na USP