Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Senso de impunidade e busca pelo escândalo

A função da imprensa, dizia um cáustico jornalista americano do século 19, Finley Peter Dunne, é “confortar os aflitos e afligir os confortáveis” – expor as agruras do homem da rua e as trapaças dos poderosos. Décadas a fio, o público britânico tolerou, quando não aplaudiu, que os tabloides londrinos, em feroz competição, recorressem sistematicamente a expedientes sórdidos, quando não ilegais, para expor detalhes escabrosos, ou apenas constrangedores, da vida privada dos “confortáveis”: políticos, nababos, aristocratas, ídolos populares. Na Grã-Bretanha essa forma pervertida de levar conforto às multidões anônimas – induzindo-as a desfrutar da desgraça daqueles a quem não podiam se comparar – fez a fortuna dos barões da gutter press, a imprensa de esgoto com suas tiragens milionárias, e tornou os seus editores figuras temíveis e objeto de bajulação.

Até que o seu senso de impunidade e a busca sem freios do escândalo os levaram a afligir cidadãos comuns que passaram por uma desventura que os transformou em “notícia”. Esta é a origem da crise que no domingo passado parou para sempre as máquinas do semanário News of the World (NoW), que vendia 2,8 milhões de exemplares (um para cada 23 habitantes do Reino Unido), infligiu um golpe sem precedentes no conglomerado de mídia e na imagem do magnata australiano Rupert Murdoch, que o publicava, escancarou a covardia do establishment político inglês diante dos pasquins que bajulavam, abalou o governo de coalizão do primeiro-ministro conservador David Cameron, evidenciou práticas de corrupção policial, desencadeou um inquérito parlamentar também inédito sobre os padrões de atuação da imprensa britânica de massa e pode desembocar em mudanças drásticas no código de autorregulamentação do setor nas Ilhas Britânicas.

Sentido original

Denúncias de invasão de privacidade em grande escala – fala-se em 4 mil vítimas –, mediante escutas telefônicas ilícitas a cargo de detetives particulares contratados pelos tabloides e acumpliciados com agentes da polícia, não eram propriamente novas. Em 2007, um editor do NoW pegou quatro meses de cadeia (e o investigador que trabalhava para ele, seis) depois de confessar que mandara bisbilhotar as caixas de mensagens de telefones de membros da realeza. À época, o NoW era chefiado por Andy Coulson – que o premiê Cameron nomearia diretor de comunicações do governo. Na semana passada, Coulson, que já havia se demitido, foi preso por corrupção e escuta ilegal. Solto mediante fiança, continua sob investigação.

O que, afinal, rebentou as costuras do escândalo e atraiu a ira da opinião pública foi a revelação de que, entre as vítimas das devassas, estava um casal cuja filha de 13 anos havia sido sequestrada em 2002. Antes que a polícia encontrasse o seu corpo, o araponga a serviço do tabloide havia esvaziado a caixa de mensagens do celular da jovem, o que deu aos pais a esperança de que ela pudesse estar viva.

Destampada a cloaca, novas denúncias se atropelam. A BBC, por exemplo, apurou que outro semanário da News Corp. de Murdoch, o Sunday Times, violou o sigilo fiscal do então ministro da Fazenda e depois primeiro-ministro, Gordon Brown. Mais tarde, o principal diário marrom do conglomerado, The Sun, recorreu a meios também torpes para revelar que um filho de Brown, recém-nascido, tinha uma doença genética incurável.

O jorro de lama não deve cessar tão cedo. Desde logo, porém, a crise obrigou o magnata a desistir de seu plano de comprar a BskyB, a maior provedora de TV paga no Reino Unido, da qual já detém 39%. Por ser estrangeiro, Murdoch apenas foi convidado a depor no Parlamento. Já o seu filho James, número um do grupo no Reino Unido, e a sua demissionária presidente executiva, Rebekah Brooks, ex-editora do NoW, deverão ser ouvidos na próxima semana. Ambos poderão responder a processo criminal. Trata-se, de fato, de punir os delitos da imprensa de esgoto, acabando com o misto de temor, cinismo e conveniência política que os acobertava. E isso sem tolher o direito à informação graças ao qual o jornalismo honesto pode confortar os aflitos e afligir os confortáveis – no sentido original da expressão.