Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Murdoch nas sandálias da humildade

A encenação compungida do magnata australiano Rupert Murdoch diante da Comissão de Mídia, Cultura e Esporte do Parlamento britânico já surtiu o efeito desejado: parte da mídia começa a desviar do empresário o foco do escândalo, dirigindo suas atenções para o primeiro-ministro David Cameron.

As razões pelas quais a imprensa prefere aparentemente preservar Murdoch e crucificar o chefe do governo ainda não estão claras, mas podem indicar que, depois de décadas criticando os métodos do “publisher” maldito, os jornais acabaram por adotar algumas de suas técnicas.

Afinal, que empresa jornalística, principalmente aqui no Brasil, não teve ou tem um titulozinho “popular”, desses que despejam sangue quando espremidos?

Ou uma revista de fofocas a invadir a privacidade de candidatos a celebridade?

Até onde foi ultrapassado o limite, por exemplo, na cobertura da morte da menina Isabella, em 2008?

Murdoch produziu uma cena de consternação, dizendo estar passando por seu momento de maior humildade – que alguns jornais traduziram como humilhação, o que teria sido mais correto. Mas não assumiu a culpa pelos crimes cometidos por jornalistas a seu serviço.

O “ataque” de um comediante, que tentou acertá-lo com uma tigela de creme de barbear, serve como parte do jogo para transformá-lo em vítima de sua própria empresa.

Mas os jornais não avançam na identificação do agressor, nem explicam como ele conseguiu entrar no recinto sem ter sido barrado.

Isso numa Londres sob vigilância permanente contra ações de terroristas.

Também faz parte do pacote diversionista a descrição da mulher de Murdoch, Wendi Deng, como “a tigresa que roubou a cena”, segundo o Globo.

Uma pequena biografia a mostra como uma mulher sem escrúpulos e ambiciosa que pode vir a ser “a grande dama da mídia quando Murdoch morrer”.

Mas a descrição de sua ação ao conter o agressor a coloca na posição de mulher decidida a proteger o marido senil.

Esse tipo de comentário, que a imprensa adora incluir no noticiário mais pesado, tem o efeito de “humanizar” certos personagens sob pressão.

Faz parte do processo de relativizar os acontecimentos.

Diante do espaço reservado a essas amenidades, reduz-se o impacto das informações realmente importantes, como o fato de que um quarto dos assessores de imprensa da polícia londrina é composto por ex-funcionários de jornais de Murdoch

Entre a liberdade e o abuso

São muito evidentes os sinais de influência do empresário em setores importantes da administração pública britânica e chama atenção certa disposição da imprensa, de modo geral, a aceitar a tese de que Rupert Murdoch e seu filho James não sabiam das irregularidades cometidas em nome do jornalismo.

Há trinta anos, quando o aventureiro australiano começou a estender seu império na Inglaterra e nos Estados Unidos, a imprensa estabelecida o tratava como um escroque, pelo simples fato de que ele fazia crescer seu império a partir dos “tabloides”, mas avançava sobre marcas tradicionais, como o Times de Londres e o próprio News of the World.

O escândalo coloca em pauta a questão da liberdade de imprensa versus a defesa de outros direitos fundamentais, como o direito à privacidade, e, ligado a este, o direito à presunção da inocência.

Mas o problema revolvido pelo desmascaramento de Murdoch vai além – desvela a prática de negócios paralelos ao jornalismo nas relações impróprias entre imprensa e poder público.

Em escala menor, certas relações de compadrio entre dirigentes partidários e editores repetem o que Murdoch representa num nível ampliado.

Não há notícias, por aqui, de empresários de comunicação impondo nomes para ministérios ou secretarias, mas a mistura entre política e imprensa anda perto disso em alguns estados.

Em artigo publicado pelo Washington Post e reproduzido pelo Estadão na segunda-feira, dia 18, outro controverso empresário de comunicação, o americano Larry Flint, dono da revista Hustler, afirma que até ele considera que a imprensa precisa entender os limites de sua liberdade.

Uma frase de Larry Flint deveria guiar as decisões dos editores: “Somente quando os leitores acreditarem que o material publicado foi obtido honestamente é que uma imprensa livre poderá continuar sendo a força propulsora na preservação da nossa democracia”.

A imprensa tem a obrigação de denunciar a corrupção e os desmandos onde quer que sejam flagrados. Mas talvez devêssemos refletir, por exemplo, se as práticas de reproduzir dossiês seletivamente e dar publicidade a documentos vazados de processos em andamento compõem esses predicados de honestidade.