Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um americano intranquilo

Barack Obama é um dos políticos americanos mais bem tratados pela imprensa em toda a história do país. Desde que ascendeu à condição de figura nacional, em 2004, ao fazer o principal discurso da convenção nacional do Partido Democrata que escolheu John Kerry como candidato à Presidência, ele sempre recebeu atenção positiva da maior parte dos veículos de comunicação.


Grupos e pessoas de extrema direita e racistas tentaram, no entanto, prejudicá-lo ao máximo por meio de campanhas em geral disseminadas pela internet que cresceram em intensidade com sua decisão em 2007 de disputar a Casa Branca e, mais ainda, durante a campanha de 2008 e após sua vitória.


Entre as muitas alegações espalhadas por meio da web, programas de rádio e TV por cabo, livros e alguns jornais sensacionalistas estão a de que o presidente não é cristão (e sim muçulmano) nem americano nato (segundo os boatos, ele nasceu no Quênia, país de seu pai). Ter nascido nos EUA é condição constitucional para ser presidente do país. Se os rumores fossem verdadeiros, Obama perderia o seu mandato.


A esmagadora maioria dos meios de comunicação “tradicionais” tratou consistentemente o assunto com uma abordagem favorável à versão de que Obama nasceu no Havaí, conforme sua campanha imaginou ter conseguido provar sem dúvidas em 2008, quando divulgou uma certidão de nascimento.


A expedição de certidões de nascimento nos EUA é uma função dos estados. Há diversos tipos desse documento. Esta foi uma das razões por que o assunto da nacionalidade de Obama permaneceu vivo por tanto tempo: ele nunca havia mostrado ao público, até a semana passada, o chamado “certificado longo” de seu nascimento.


A polêmica ganhou peso este ano quando, além dos inimigos de Obama já estabelecidos, o empresário Donald Trump, figura muito conhecida por suas excentricidades, casamentos bombásticos, programas de TV e uma notável peruca, engajou-se nela, aparentemente para tentar construir sua candidatura presidencial para o ano que vem.


O tema voltou com tudo para a agenda nacional. Como antes, outra vez os veículos de comunicação deram majoritariamente crédito ao presidente, não a seus acusadores. Mas Obama, ao exibir o documento que ele espera vá pôr fim às especulações, responsabilizou a imprensa pela confusão.


Ele afirmou que nas duas semanas anteriores, quando se discutia o Orçamento federal, “o assunto dominante [na mídia] não foram as escolhas imensas, monumentais, que teremos de fazer como nação; foi a minha certidão de nascimento. E isso ocorreu com quase todos os veículos de comunicação aqui presentes”, disse Obama aos setoristas da Casa Branca.


“O outro”


O incidente culmina um processo longo de distanciamento progressivo entre o presidente e o jornalismo em geral. No início de seu governo, Obama mostrava disposição de ataque apenas contra os seus inimigos na mídia. Ele chegou a não convidar para uma entrevista coletiva repórteres do canal de TV por cabo Fox News, que tem posições editoriais extremamente conservadoras (depois, no entanto, deu uma exclusiva para a emissora).


Com os jornais, revistas, emissoras de TV e rádio neutras ou simpáticas a ele, Obama tinha uma relação excelente. Mas as dificuldades em superar a crise econômica, o recuo em algumas promessas de campanha (como a de fechar a prisão de Guantánamo) e principalmente a derrota que sofreu na eleição parlamentar de 2010 levaram Obama a se insurgir contra o jornalismo em geral, a exemplo do que haviam feito quase todos os antecessores.


Ao visitar uma escola em Virgínia no mês passado, Obama disse a uma professora, que antes havia sido jornalista, que ela estava de parabéns por ter resolvido “fazer alguma coisa de útil na vida”. Entrevistas exclusivas, comuns até o ano passado, agora rareiam. E ataques de mau humor contra jornalistas, antes quase inexistentes, começam a se tornar frequentes.


Irritação de presidentes com a imprensa nada tem de novo. O que era inédita era a convivência quase pacífica registrada durante os primeiros meses da administração Obama.


Como as da maioria de seus predecessores, as alegações de Obama contra a imprensa não se sustentam nos fatos. O Projeto para Excelência em Jornalismo do Centro Pew de Pesquisas, que mantém uma precisa e sistemática mensuração do conteúdo da mídia americana, mostra que no período em que o presidente disse que sua certidão de nascimento havia sido o tema dominante, apenas 4% de todo o espaço editorial havia sido dedicado a ela (39% foi para o debate sobre o Orçamento, 10% para as revoltas no mundo árabe, 8% para a tragédia japonesa).


De fato, Obama se comporta como os quase 20% de americanos que ainda acreditam que ele é muçulmano, apesar de todas as provas e evidências em contrário. Ou os 41% que em 2007 ainda diziam que Saddam Hussein estava diretamente envolvido com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, apesar de não haver nenhum sinal de qualquer vínculo entre eles.


Pessoas, quaisquer pessoas, têm uma tendência fortíssima de manter crenças que estão de acordo com seu núcleo básico de valores, não importa o que a realidade lhes mostre. E muitas preferem atribuir a fatores externos as inconsistências derivadas dessas contradições. Um dos bodes expiatórios preferidos têm historicamente sido os meios de comunicação: anônimos, distantes, pode-se dizer que eles são culpados de tudo, da violência nas ruas à sexualidade entre jovens.


No caso dos inimigos de Obama, nada os demoverá da convicção de que ele é “o outro”. Cerca de um quinto dos americanos simplesmente não aceitam que seu presidente possa ser um mulato, filho de imigrante africano, que só se converteu ao cristianismo já adulto e, ainda por cima, defende ideias que eles consideram socialistas.


Como dantes


Pouco importa que os meios de comunicação digam que Obama é ou não é muçulmano, nasceu no Havaí ou no Quênia. Seus detratores achariam maneiras de disseminar essas ou outras mentiras capazes de realçar como ele é fundamentalmente diferente do que consideram ser o americano típico (branco, protestante, conservador), embora o censo populacional demonstre a cada ano como este “americano ideal” vai deixar de existir daqui a poucas décadas.


Quanto a Obama, apesar de toda sua inegável sofisticação intelectual, é humano: também prefere atribuir a outros, no caso os meios de comunicação, a causa de problemas muitas vezes provocados por atitudes irracionais – como o do caso da certidão de nascimento – que enfrenta e o prejudicam. Ou, se não crê que a imprensa seja a responsável por seus males, deve preferir culpá-la do que aos eleitores, que em 2012 vão decidir se lhe dão um novo mandato de quatro anos como presidente.


Talvez possa servir de consolo a Obama o fato de ele não ser a única celebridade a ter dificuldades com a cidadania americana. Na semana passada, o Super-Homem, que usa a identidade do jornalista Clark Kent em suas atividades “civis”, disse que iria renunciar à sua nacionalidade por estar “cansado de ter minhas ações construídas como instrumentos das políticas dos Estados Unidos”. Como era fácil prever, as forças ultraconservadoras do país já estão em plena campanha de hostilidade contra a DC Comics, a editora que publica a história em quadrinhos do personagem.


Para o presidente, talvez seja uma boa notícia, afinal. A indisposição contra o super-herói pode lhe dar alguma trégua entre os seus inimigos.


Quanto à imprensa, ela vai continuar a noticiar o que acontece e a ser acusada de quase tudo que vá mal para qualquer pessoa.

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Jornalista