A mistura de profissionais de diferentes áreas favorece que se amplie a visão estratégica na comunicação. A chamada Lei Amarildo impede essa mestiçagem ao aumentar número de funções exclusivas de quem tem diploma de jornalista.
Se Brasília, por algum passe de mágica, passasse a abrigar um museu como o Louvre ou o Metropolitan, os guias de turismo bem que poderiam, nesse momento, esquecer as obras de arte tradicionais para indicar aos visitantes e, também, aos moradores locais uma relíquia bárbara dos idos das antigas guildas medievais: a sede da Fenaj.
Dali, em tempos recentes saiu o projeto do conselho que iria censurar os jornalistas, sob o pretexto de garantir os elevados ritos éticos da profissão, e mais recentemente a chamada Lei Amarildo, um monumento ao corporativismo. Leia-se, melhor dizendo, ao obscurantismo.
Espírito sensível
Antes de entrar mais diretamente no tema, faço um registro pessoal. Comecei no jornalismo aos 17 anos. Foi no jornal A Tarde, em Salvador. Na época, consegui um registro de provisionado no Ministério do Trabalho e sonhava em estudar Direito. Logo desisti do curso de Direito.
Queria ser jornalista e entendia que deveria estudar jornalismo. Fiz o curso. Nunca me arrependi da decisão. Por isso, sinto-me perfeitamente à vontade de condenar qualquer tentativa de monopolizar as diferentes funções da comunicação e do próprio jornalismo para aqueles que possuem um diploma de jornalismo.
Pura insensatez! Pode-se argumentar que médicos precisam de diploma, advogados, engenheiros, arquitetos, enfim, todas as profissões têm os seus ritos para que sejam exercidas. O jornalismo não é exceção. A diferença é que o jornalismo, como a comunicação, é uma profissão meio. Um ponto de interseção entre especialidades múltiplas.
Todo e qualquer profissional que saiba escrever e tenha algo a dizer de original pode exercer o jornalismo. Basta ler os jornais brasileiros ou de qualquer parte do mundo para constatar o quanto essa prática é saudável e valiosa para o leitor.
A comunicação é a mesma coisa. Uma profissão mestiça. Nela, se misturam profissionais de diferentes origens, dos jornalistas aos advogados, dos relações públicas aos sociólogos. Quanto maior a mestiçagem, maiores os horizontes de êxito e de visão estratégica. Foi sempre assim, desde que, há um século, esse tipo de trabalho, da forma como que é hoje estruturado, deu os seus primeiros passos.
Por que então querer legislar sobre um processo que se tornou uma exigência da própria sociedade? Por legislar, leia-se querer garantir postos de trabalho por decreto para uma categoria específica. É algo semelhante a revogar a lei da oferta e da procura ou baixar as taxas de juros com um golpe de pena.
Agir assim é como cavar buracos na areia. Novamente um registro pessoal. Por oito longos anos dirigi uma revista de uma grande corporação brasileira. O diretor de marketing era um advogado. Poucas vezes convivi com um espírito tão sensível, com uma visão de comunicação tão sofisticada. E veja que ao longo da vida trabalhei com profissionais do calibre de Mino Carta e Evandro Carlos de Andrade. Também, ao longo da vida trabalhei com profissionais de comunicação da mais alta qualidade, alguns originários do direito, outros do jornalismo, muitos do marketing.
Pedido de desculpas
Pergunto: por que só o jornalismo poderia abastecer redações e empresas de talentos?
Ilusão. Por trás de iniciativas como a Lei Amarildo está a sedução pelo controle, típica das guildas medievais que o stalinismo reeditou em nome de um pretenso paraíso dos trabalhadores. Na realidade, um inferno onde só os burocratas do partido comunista podiam se sentir à vontade, dada a vasta pletora de privilégios.
Simone de Beauvoir, no clássico o Pensamento da Direita, defende a tese de que a humanidade vive em permanente conflito entre o atraso e o progresso. A face do atraso exige muitas máscaras para camuflar o seu rosto pateticamente deprimido. Uma delas é a ditadura das leis. É o que os conservadores, de todas as matizes, vêm tentando fazer no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.
Cabe à sociedade reagir. Foi o que fez, por exemplo, a Aberje (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial). Espera-se que o presidente Lula vete a Lei Amarildo. Pelo seu conteúdo antidemocrático e, portanto, antiprogresso só merece um lugar na história: a lixeira.
Fica, porém, uma pergunta que exige resposta: como o Congresso aprova uma lei desta natureza sem debatê-la antes com a sociedade e os diferentes segmentos de profissionais envolvidos no jornalismo e na comunicação?
Ao agir assim, os atuais legisladores – não a instituição, é preciso que fique bem claro – não estariam também se autocondenando a serem vistos como relíquias bárbaras de algum tipo de museu da ineficiência? Deixo a resposta com os parlamentares. Bem que podiam dar o exemplo, pedir desculpas à sociedade e voltar atrás na triste trapalhada.
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Jornalista