Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

“Nunca mais outra vez”

Quarta-feira de verão em Munique. O dia estava ensolarado. Marquei um encontro com um amigo publicitário paulista, Edson Cury, que estava de passagem pela Alemanha. Nosso destino: a tranquila cidade de Dachau (em alemão pronuncia-se “Darrau”). Pegamos um trem que 25 minutos depois nos deixou na região central.

Quem olha a pacata cidade pela primeira vez jamais imagina o seu grau importância histórica. Ali nas suas imediações foi construído o primeiro campo de concentração do Terceiro Reich a mando de Adolf Hitler, então recém-chegado ao poder. Pegamos um ônibus que nos levou diretamente para a entrada do campo. A fachada da entrada principal preserva sua forma original desde a sua construção em 1933. No portão de ferro está escrito: “Arbeit macht frei” que ironicamente significa “O trabalho liberta”, demonstrando o cinismo dos nazistas cujas intenções já estavam pré-determinadas.

Milhares de pessoas que passaram por aqueles portões jamais voltariam. O campo de Dachau foi o projeto-piloto que mais tarde serviria de modelo para a implantação de outros campos de mão-de-obra escrava e do extermínio de judeus da máquina de horror nazista. O mesmo projeto foi implantado na Polônia, um dos países conquistados por Hitler, numa escala ainda maior. Em território polonês foi construído Auschwitz, considerado o maior campo de concentração do regime da SS, a tropa de elite nazista, que dizimou milhares de vidas.

No campo de Dachau, quando se começa caminhar pelo pátio principal o coração dispara. É possível sentir a energia pesada do lugar e é quando começamos a engolir a seco. A sensação era a de que tínhamos voltado ao passado, através de uma máquina do tempo e agora fazíamos parte daquele lugar e nos sentíamos um pouco prisioneiros do regime nazista.

Castigos em caso de rebeldia

Os visitantes, incrédulos, passavam pelos barracões no mais absoluto silêncio. Um grupo de jovens de Israel ouvia atentamente as explicações do sábio professor. No rosto daqueles jovens judeus era possível ver o sentimento de horror e revolta. Vários monitores instalados em diversos pavilhões mostravam imagens da brutalidade do regime da época. São imagens chocantes, coloridas, em 16 milímetros, produzidas pelos americanos quando da libertação dos prisioneiros em 29 de abril de 1945.

O complexo foi criado inicialmente para abrigar presos políticos, opositores ao regime nazista, homossexuais, cristãos e posteriormente visando ao extermínio dos judeus. As instalações eram comandadas pelo chefe da SS nazista, Heinrich Himmler, que recebeu muitos elogios de Hitler por ser o campo com o maior número de prisioneiros da Alemanha. Com a implantação do anti-semitismo, os judeus aprisionados em Dachau eram obrigados a servir de cobaias vivas para os diversos experimentos nazistas. Vários testes foram realizados como, por exemplo, um judeu colocar a mão num recipiente com insetos para ser infectado com a malária e, consequentemente, estudar as reações e a transmissão da doença dentro do campo. Eram realizados também testes de choque térmico para analisar e melhorar as condições de sobrevivência de pilotos da força aérea alemã no caso de um possível acidente e queda do mar.

Além de serem transformados em autênticos “ratos de laboratório”, os judeus tinham uma jornada de aproximadamente 12 horas de trabalhos forçados e uma alimentação insuficiente, o que ocasionou muitas mortes. Outras baixas eram provenientes das torturas empregadas nos prisioneiros, como as dolorosas chibatadas. Várias cópias de documentos oficiais mostram a brutalidade das ações ali praticadas. Um dos documentos mais curiosos descreve uma série de procedimentos para se castigar um judeu em caso de rebeldia ou pelo não cumprimento de suas obrigações. Se algum trabalho fosse considerado mal realizado, um dos castigos era ficar em posição de sentido no pátio, ao ar livre, dia e noite, vários dias seguidos, independente das condições climáticas, sem água e sem alimentação.

Um memorial ao ar livre

Ao visitarmos os fornos crematórios é que tomamos consciência das ações ali praticadas. O corpo das vítimas era colocado nos fornos pelos próprios judeus que trabalhavam naquele setor. Sem poder esboçar qualquer sentimento de dor ou perda, aqueles homens eram obrigados a contribuir involuntariamente para a solução final na questão judaica na Alemanha. Num belo jardim, há várias indicações dos locais onde os prisioneiros eram fuzilados para depois serem cremados. No bosque, há vários monumentos em memória de prisioneiros desconhecidos que foram executados ali.

Um grupo de jovens alemães ouve atentamente a professora idosa explicando as barbáries cometidas no campo. Comecei a fotografar o grupo de estudantes. Os jovens se divertiam fazendo poses e caretas para a minha câmera. A professora interrompeu a sua aula e me perguntou qual o motivo das fotos. “São fotos para a imprensa brasileira”, respondi. Ela me explicou da importância em trazer os jovens alemães para visitar o campo e com isso evitar que uma barbárie imensurável se repita futuramente na Alemanha e no mundo. “Nunca mais outra vez”, finalizou a professora.

O campo de concentração de Dachau é hoje uma espécie de memorial ao ar livre. Para se visitar o campo não é necessário pagar. A visita dura aproximadamente três horas e meia. Para se obter outras informações visitem o site: www.kz-gedenkstaette-dachau.de

Manifestação em clima tenso

Saindo de Dachau, acompanhei uma manifestação pública contra os neonazistas. A concentração aconteceu em frente à prefeitura de Munique em Marienplatz. Pessoas se revezavam em discursos inflamados contra um novo retorno nazista. Faixas espalhadas pela praça propunham uma Munique mais colorida e não marrom, fazendo referência a cor usada pelos neonazistas. Jovens, adultos e idosos, estes últimos os que mais sofreram as consequências da guerra, se expressavam com gritos e apitos contra uma possível ascensão do partido. Policiais observavam a manifestação de longe. Um grupo de pessoas distribuía jornais e panfletos explicando o porquê do protesto. Um jovem empunhava uma bandeira vermelha com a imagem de Che Guevara. Não foi à toa que a manifestação aconteceu: a algumas quadras dali, os neonazistas iniciavam uma marcha pela cidade, devidamente autorizada pela prefeitura. O trânsito foi interrompido em diversas ruas da cidade. Um batalhão da tropa de choque fez um cordão de isolamento para dar segurança e garantir que a manifestação pacífica acontecesse de forma democrática.

Uma multidão de curiosos xingava e gritava palavras de ordem. Os neonazistas carregavam faixas pedindo a saída dos estrangeiros do país e mais emprego para os alemães. O clima é tenso. Tento cruzar o cordão de isolamento, mas sou impedido por dois policiais da tropa de choque. Disse-lhes que iria fazer umas fotos para a imprensa brasileira, mas meu acesso é negado. Vejo uma das entradas do metrô. Se eu descer pelo metrô, pensei comigo, e atravessar a rua pelo túnel poderei sair diretamente no centro da manifestação. Corri em direção ao metrô e, como havia planejado, cruzei a rua por baixo mas quando estava prestes a subir as escadas, uma policial me barrou novamente: mesmos argumentos, mesmas respostas negativas. Voltei para a rua e fui acompanhando a passeata junto aos manifestantes. Num descuido de um dos policiais consegui entrar no meio da passeata neonazista. Vi um grupo de fotógrafos e me juntei a eles. Pronto, agora eu estava lá infiltrado e podia fazer as fotos que quisesse. Alguns policiais até faziam pose para a minha câmera.

O clima ficou tenso novamente quando os manifestantes passaram por um grupo de dissidentes que empunhavam duas grandes bandeiras de Israel. A polícia, eficientemente, continha os mais revoltados e em nenhum momento precisou usar da violência contra a multidão. Um jovem líder neonazista me perguntou se eu tinha autorização para estar ali: mais uma vez eu disse que não. Ele pediu a um policial que me tirasse dali. Sem problemas, já tinha tirado fotos suficientes. Um outro grupo de jovens acusava a polícia de apoiar os neonazistas. O comando policial e a prefeitura de Munique possuíam câmeras e filmavam toda a operação. A passeata chega ao fim sem maiores incidentes.

“Eu me sentia inferior ao meu cachorro”

Um olhar para o passado e as incertezas do futuro colocam em xeque a frase da professora: “Nunca mais outra vez.”

Números: aproximadamente 7,2 milhões de pessoas foram encaminhadas aos campos de concentração espalhados pela Europa. Durante o período da Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), existiram 22 campos de concentração. Em 22 de março de 1933, Dachau recebe seus primeiros prisioneiros. Aproximadamente 35.000 entraram em óbito ou foram executados no campo de concentração de Dachau. No dia 29 de abril de 1945, soldados americanos libertaram 70.000 prisioneiros do campo de concentração de Dachau em condições lastimáveis. 500 mil pessoas conseguiram sobreviver aos campos. O Vaticano estima que aproximadamente 3.000 religiosos entre bispos e padres foram aprisionados em Dachau.

“Eu tinha a sensação de ter que pedir desculpas ao meu cachorro pelo fato de pertencermos à raça humana. Quanto mais adentrávamos o campo de concentração e víamos os esqueletos revestidos de pele e as instalações características do campo de extermínio, tanto mais eu me sentia inferior ao cachorro porque, como pessoa, eu pertencia à raça responsável por Dachau” (frase atribuída ao rabino militar norte-americano Eli Bohnen).

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Cineasta, jornalista e ex-correspondente internacional na Europa