Não se justifica o impacto negativo que teve na mídia a aprovação do PLC 079/2004 que regulamenta e atualiza as funções dos jornalistas. Tanto a profissão quanto a sociedade, só tem a ganhar com a consolidação de um perfil privativo de jornalistas, principalmente para o ensino do jornalismo. Mais do que nunca precisamos de jornalistas para ensinar jornalismo nas universidades. A lei já garantia isto. Mas o MEC também recomenda que, para ser professor, é preciso ser doutor (ou mestre, se faltar doutor). E onde estão os jornalistas doutores? Ainda são raros no universo acadêmico.
A Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo, criada há três anos, tem cerca de cem doutores filiados. As Faculdades de Comunicação, que são mais de 500 no país, dentro das quais funcionam os cursos de Jornalismo, estão repletas de doutores mas não necessariamente na área de jornalismo. Eles podem ser sociólogos, antropólogos, psicólogos, semiólogos ou comunicólogos. Há mais ólogos que istas no mundo dos jornalistas-professores.
O artigo 2º, incisoVI, da lei 83.284/79, já previa que o ensino de técnicas e teorias jornalísticas é privativo do jornalista profissional. Em 1984, uma resolução do Conselho Federal de Educação determinava que os professores da parte específica de cada habilitação deveriam ter registro profissional e três anos de experiência de mercado. Era a realidade da época, as universidades precisavam de profissionais para formar profissionais a fim de atender as necessidades do mercado de trabalho. A formação se concentrava na experiência, no fazer, mais do que no pensar. O professor de fotografia era fotógrafo, o professor de redação era jornalista, o professor de diagramação era diagramador.
Esta decisão tem sido respeitada nos editais de concursos públicos na maioria das universidades federais. Mas o curso de jornalismo é apenas um entre tantas habilitações das faculdades de comunicação social que oferecem também cursos de publicidade, cinema, audiovisual e relações públicas. Era preciso encontrar professores de Teorias da Comunicação, Sociologia da Comunicação, Ética e Legislação, Métodos e Técnicas de Pesquisa, entre outras disciplinas de um currículo mínimo mas vasto.
Portas fechadas
A produção do conhecimento se tornou complexa e o MEC precisou dar conta da complexidade do ensino superior onde a pesquisa passou a ter lugar tão importante quanto o ensino e a extensão. Exige-se hoje titulação acadêmica máxima para ingressar no magistério superior: doutorado, pós-doutorado e obras publicadas. Quem já é professor e não tem mestrado, pede licença para capacitação e vai fazer doutorado, no exterior ou no Brasil, que tem hoje excelentes condições para formar seus doutores. Um profissional graduado com o título de Bacharel em Jornalismo só pode entrar na universidade pública como aluno de pós-graduação, não como professor. Uma tendência que vem crescendo nos meios profissionais das grandes empresas jornalísticas. Infelizmente, a maioria daqueles que são aprovados, após uma rígida seleção, não conseguem terminar o curso. Absorvidos pelas rotinas produtivas da profissão, abandonam o curso na hora de escrever a tese.
Uma das poucas conquistas das últimas greves foi a liberação, pelo MEC, de mais de duas mil vagas para docentes de ensino superior, das quais 69 para a UnB. Três delas foram para a Faculdade de Comunicação. Os editais pediam doutores para todas as áreas, mas tiveram que se contentar com mestres para as disciplinas de Fotografia e Planejamento Gráfico.
Nos últimos dez anos, foram raros os concursos autorizados pelo MEC. Neste período, professores que se aposentavam, pediam demissão ou morriam não geravam vaga, apenas abriam espaço para a figura do ‘professor-substituto’. Trata-se de um processo de seleção simplificada através de edital público. O professor é contratado em condições precárias, sem direito a férias nem décimo terceiro salário, mediante análise de currículo e entrevista, pelo período de um ano, renovável.O regime é de 20 horas ou 40 horas e a exigência também é de titulação máxima . Tudo isso por um salário de mil e poucos reais. A falta de professores é tanta que há departamentos que funcionam às custas dos professores-substitutos, espécie de bóias-frias da universidade.
Mas voltemos ao caso específico dos professores de jornalismo para ficar dentro da discussão do projeto de lei. Neste caso, o processo é perverso. Se a universidade forma os jornalistas para o mercado profissional deveria também formar os professores de jornalismo. A própria legislação diz isso. Mas para ensinar jornalismo seria recomendável que o profissional tomasse antes um banho de mercado, ver como é a vida lá fora, nas redações, nas portas dos ministérios, mas ruas das cidades, no Congresso Nacional, na floresta amazônica, na guerra do Iraque e assim por diante. Porque assim gira o mundo dos herdeiros de Clark Kent.
Suponhamos que este jornalista, que conquistou prestígio e notoriedade ao longo de anos de exercício profissional,muitas vezes arriscando a própria vida, um dia vai se sentir cansado. E talvez pense que, em vez de se aposentar ou abrir um restaurante, poderia partilhar sua experiência com alunos de jornalismo. Mas as portas das faculdades públicas estarão barradas para ele. Sem título acadêmico, não poderá disputar uma vaga de professor. Em compensação, uma pessoa graduada em jornalismo, com pós-graduação em qualquer área afim da comunicação, poderá lecionar num curso de jornalismo, mesmo que nunca tenha pisado numa redação de jornal ou numa ilha de edição, se a disciplina for considera teórica.
Resultados práticos
O grande problema é que os professores de jornalismo que vieram do mercado estão envelhecendo (até o final dos anos 1980 não se exigia titulação máxima) e vão se aposentar. Raros são os docentes com experiência na mídia e titulação acadêmica. Como este perfil não se renova pelas razões apontadas acima, acredito que dentro de alguns anos não teremos mais nenhum jornalista como professor nas escolas de jornalismo, apenas teóricos de comunicação. É lógico que precisamos de teoria, precisamos formar profissionais capazes de refletir e de produzir sentidos. Mas esta dicotomia entre teoria e prática, entre laboratório (prática) e sala de aula ( expositiva) cria verdadeiras aberrações.
Disciplinas teóricas sem embasamento prático e disciplinas práticas sem embasamento teórico não formam profissionais, apenas deformam o que é já deficiente no ensino superior brasileiro. E isto vale para todas as áreas universitárias. É preciso não perder o foco acadêmico-profissional. Isto faz das escolas de jornalismo verdadeiros alvos de ataque das empresas.
Insatisfeitas com a formação dos jornalistas, as empresas se encarregam de formar seus próprios profissionais através de cursinhos de treinamento com recém-formados escolhidos a dedo em testes super seletivos. Por que em vez de desconfiar e negar o ensino de jornalismo, as empresas, através da ANJ, não investem nas universidades ajudando na formação de profissionais gabaritados?
Uma alternativa seria adotar a experiência européia e norte-americana, que na área de jornalismo tem dado certo. Lá, as escolas de jornalismo (que não são faculdades de comunicação) em vez de dividir, somam as competências de acadêmicos e profissionais. Os alunos recebem uma formação teórica e abrangente em ciências sociais e humanas mas, paralelamente, têm oficinas intensivas de treinamento com profissionais renomados da mídia impressa e audiovisual, na condição honrosa de professores visitantes reconhecidos e remunerados pelas universidades.
O resultado se vê na prática. Basta olhar a qualidade e a credibilidade dos grandes jornais. Algo que nós podemos fazer aqui. Graças ao projeto de lei que regulamenta a profissão de jornalista, mercado e academia, empresas e faculdades poderiam enfim começar o diálogo de interação. A sociedade agradeceria.
******
Jornalista e professora na Faculdade de Comunicação da UnB