“Que horror é o mundo!” O autor dessas palavras, o escritor argentino Ernesto Sábato, morreu na madrugada de sábado (30/4), aos 99 anos. No dia 24 de junho completaria um século de existência. O criador de obras como O túnel, Sobre heróis e tumbas e Um e o universo, embora fosse seguidor de um humanismo social como o de Bertrand Russel e Bernard Shaw, tendia à depressão ao estilo de Vincent Van Gogh e Antonin Artaud, também admirados pelo argentino.
Apesar de pessimista nas últimas décadas de vida, o escritor – cuja profissão original foi a de físico nuclear – dizia que o planeta ainda tinha “chances”: “Este século é atroz e terminará de forma atroz. A única forma de salvá-lo é pensar poeticamente”.
Com sua morte, encerra-se a plêiade de escritores argentinos de fama internacional do século 20 como Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Julio Cortázar.
Sábato, vencedor do Prêmio Cervantes em 1984, estava havia cinco anos recluso em sua casa no distrito de Santos Lugares, na Grande Buenos Aires.
Segundo sua secretária Elvira González de Fraga, há 15 dias uma bronquite complicou seu estado de saúde. Coincidentemente, hoje à noite Sábato seria homenageado na Feira do Livro de Buenos Aires com a exibição de um documentário feito pelo cineasta Mario Sábato, seu filho.
Uma das últimas aparições do escritor em público foi em 2004, no Congresso da Língua na cidade de Rosário. Ali, o português José Saramago o definiu como “autor trágico e eminentemente lúcido ao mesmo tempo”. Sábato ficou mudo, chorou e depois abraçou Saramago.
Na manhã de ontem [sábado, 29/4], ao saber da morte de seu amigo, a escritora Maria Rosa Lojo destacou que Sábato “foi uma grande influência, que ia além da literatura”. A ensaísta María Ester Vázquez, biógrafa de Jorge Luis Borges e amiga de Sábato, citou a obra Sobre heróis e tumbas como a mais transcendente da carreira do escritor.
Militância
Sábato foi anarquista e comunista na juventude. Sua militância política o levou à clandestinidade e posteriormente à Europa, onde rompeu com o comunismo e começou a se dedicar ao estudo da física no Instituto Curie em Paris.
Embora fosse considerado um dos mais promissores físicos de sua geração, Sábato abandonou a ciência e iniciou sua atividade literária em 1945, com Um e o universo, um compêndio de miniensaios filosóficos.
Apadrinhado por Victoria Ocampo, a mecenas literária argentina mais emblemática da primeira metade do século 20, escreveu romances como O túnel (1948) e Abadón e o exterminador (1974).
A política, no entanto, nunca o abandonou. Em 1976, com o colega Jorge Luis Borges, almoçou com o general Jorge Rafael Videla. Ao sair da Casa Rosada, comentou: “Um homem culto, modesto e inteligente”. Mas, posteriormente, tal como Borges, arrependeu-se do apoio à ditadura.
Em 1984, o então presidente Raúl Alfonsín encomendou-lhe a tarefa de presidir a Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas, que redigiu o Relatório Sábato, mais conhecido como o “Nunca mais”, sobre sequestros, torturas e assassinatos de civis por parte da ditadura militar argentina (1976-83).
Última fase
Sábato passou quase duas décadas sem publicar, desde Apologias e Rechaços, de 1979. Em 1992, confessou que havia estado à beira do suicídio por duas vezes. Seu exacerbado pessimismo tornou-se folclórico para os argentinos.
Mas, em 1999 – depois da morte de sua mulher Matilde, com quem estava casado havia mais de 60 anos – lançou Antes do fim, livro que entrelaça lembranças dos principais momentos de sua vida com reflexões.
Em 2000, publicou A resistência, obra que seguiu a temática de Antes do fim, com exaltação aos valores do passado e críticas à informática, “que afasta o homem do mundo que o rodeia”. Paradoxalmente, foi o primeiro livro argentino lançado na internet antes da edição impressa.
A crítica celebrou suas principais obras, escritas antes de 1979, e lamentou que seus últimos livros estavam distantes do ensaísta que cuidava de forma elaborada sua estilística.
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Material do El País (em espanhol)
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Jornalista, correspondente do Estado de S.Paulo em Buenos Aires