Houve um tempo em que Ernesto Sabato pensou que podia competir com Jorge Luis Borges (1899-1986). Então apareceu um livro seu com um anúncio publicitário que dizia: “Sabato, o rival de Borges”.
Logo perguntaram a Borges o que pensava do assunto, e, irônico, ele respondeu: “Que curioso! Jamais diria que Sabato era um rival para mim”.
Esse gesto de desdém de Borges põe Sabato em seu justo lugar, mas não explica o mistério. É que esse enigma de Sabato é parte do grande enigma da Argentina -o país do inexplicável.
Todo intelectual argentino, cada vez que viaja ao exterior, encontra-se diante da terrível situação de ter de responder a uma pergunta como esta: “Pode me explicar o que é o peronismo?”. Impossível. Para nós, é muito simples compreender o peronismo, mas impossível explicar.
Noutro extremo, algo semelhante ocorre com Sabato. Como é possível que um escritor sem grandes méritos se converteu numa referência da literatura argentina? Como é possível que com uma trajetória política um tanto duvidosa tenha se tornado o campeão moral da nação? Impossível expressá-lo.
O sucesso de Sabato há de ser explicado pelo viés do mal-entendido, do inefável.
Escritor de certa influência existencialista (“O Túnel” é seu melhor livro), adquiriu rapidamente uma pose estereotipada de alma desgarrada, de consciência atravessada pelos demônios.
Dois demônios
Volta aqui o paradoxo: Sabato, que sempre se imaginou como um escritor escuro e maldito, ocupou publicamente o lugar do politicamente correto, da sensatez. Foi o homem aplaudido pelos meios mais poderosos, pela classe política mais trivial. O senso comum foi seu horizonte de pertencimento.
Depois de certo flerte com o ditador Jorge Rafael Videla, rapidamente se recompôs como o intelectual da transição democrática.
Presidiu a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, que investigou os crimes da ditadura, e é seu o célebre prólogo de “Nunca Mais”, o livro oficial sobre aqueles crimes.
Prólogo esse que expressa como ninguém a ideologia conservadora daquele retorno à democracia: nele se igualam ética, política e juridicamente o terrorismo de Estado com as ações cometidas pelas organizações revolucionárias dos anos 70. É o que se conhece como “teoria dos dois demônios”.
Novo paradoxo: Sabato era o homem que acreditava nos demônios, que os invoca, mas desta vez o faz em nome da moderação.
Ele foi o escritor que encarnou a consciência moral de um país, obturando as perguntas mais críticas, enclausurando os debates políticos mais agudos.
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Material do El País (em espanhol)
Morre o escritor argentino Ernesto Sabato– Soledad Gallego-Díaz
“Me chamo Ernesto”– Ernesto Sabato (excerto do livro de memórias Antes do fim (1999).
Lembranças do homem que se encontrava com os anônimos– Juan Cruz
“Há que nomear a verdade”– Ernesto Sabato
A literatura como mal-estar no mundo– J. Ernesto Ayala-Dip
“Que se lembrem de mim como uma pessoa às vezes rabugenta, mas um bom sujeito”– S.G-D.
Fotogaleria– Uma vida de quase 100 anos
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Escritor e jornalista, autor de La Expectativa (2006), Las Hernias (2004), entre outros