Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Mais ética no jornalismo?

A partir do “MurdochGate”, temos visto, pela primeira vez, uma preocupação globalizada com questões éticas da liberdade de imprensa (Bucci), especialmente no que toca ao jornalismo. Como liberdade é palavra das mais retóricas, o debate é bastante folhetinesco, carregado de determinismos e expressões de efeito. Procuro, neste texto, discutir algumas nuanças dos acontecimentos sob o viés da “vocação política” (Weber) do jornalista enquanto agente; e não somente do jornalismo enquanto serviço/atividade.

Para isto, estabelecemos algumas premissas, tanto básicas quanto problemáticas. Uma dessas premissas é a óbvia ligação do jornalista com a democracia, estabelecendo a comparação do jornalista com o homem público, político, mandatário da confiança popular e, até certo ponto, representante dessa opinião pública. Outra premissa está no constitucionalismo mundial dos direitos humanos. É dizer: além das constituições nacionais, também pactos e declarações internacionais preveem a liberdade de expressão, de comunicação e de opinião. No tecido dessas liberdades, estaria a liberdade de informação jornalística (Opinião Consultiva OC-5/85, Corte Interamericana de Direitos Humanos).

No caso do Brasil, que é membro da Organização das Nações Unidas (ONU), que tem quase duzentos países-membros, e da Organização dos Estados Americanos (OEA), isso significa dizer que temos, pelo menos, três instâncias (não superpostas hierarquicamente, no caso da ONU e da OEA) de proteção ao direito fundamental à informação jornalística. Tais instâncias compreendem o âmbito nacional, através da Constituição Federal de 1988; o âmbito internacional regional, através da Convenção Americana de Direitos Humanos (o Pacto de San José da Costa Rica no sistema interamericano, OEA); e o âmbito internacional global, através da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP, sistema global da ONU).

Promoção da ética

Então, previsões abstratas, mecanismos constitucionais e supraconstitucionais de proteção ao direito à informação jornalística existem. Mas qual o conteúdo concreto dessas previsões? Entramos no campo minado dos acordos constitucionais sem teorias constitucionais (Sunstein), das formulações imprecisas, das equações aparentemente sem respostas. E um dado preocupante sobre a possibilidade de se obter alguma resposta: discutir o “mercado das ideias” (Mill) evoca as tradições liberais mais romanescas, como se ainda estivéssemos em 1859; mesmo tendo o mercado econômico se desenvolvido e multifacetado, e a despeito das inúmeras formas de acordo, regulações e intervenções estatais. De forma que nem o personagem “mercado” acredita mais na total abstenção do Estado, nem na sua própria capacidade de autogoverno, como muitos querem fazer crer.

A relação está no fato de que é necessário discutir às claras a problemática da liberdade de expressão e de informação jornalística, incluída aí a questão regulatória. Nesse ponto, esclarece-se que a Constituição Federal de 1988 não vedou a edição de leis sobre o tema, estabelecendo restrições ao conteúdo de possível lei (garantias e direitos fundamentais). No sistema da ONU, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) estabelece limites e responsabilidades (sem grande impacto, pois a Corte Internacional de Justiça, órgão judicial da ONU, pouco tem atuado na questão dos direitos humanos).

E, no sistema interamericano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (órgão de caráter não judicial), em relatório sobre a ética nos meios de comunicação, ressalta a importância do artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que trata da liberdade de expressão e traz importantes restrições. A Comissão aponta, ainda, mecanismos com e sem a participação estatal para a promoção da ética.

Regulação da atividade jornalística

Com participação estatal: regulamentação governamental do conteúdo do material jornalístico compatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos; proteção dos direitos e da reputação das pessoas; proteção da segurança nacional, da ordem pública e da salubridade ou moral públicas; bem como promoção de maior exatidão da informação. Sem participação estatal: códigos de ética; capacitação; conselhos de imprensa (associações formadas por membros dos meios de comunicação e do público); e críticas dos meios de comunicação (como este Observatório e ombudsman), lembrando a noção de Meios para Assegurar a Responsabilidade Social dos Media (MARS, Bertrand).

Curioso é observar que inexistem garantias ao agente profissional do jornalismo – o jornalista. Apenas debate-se do ponto de vista estrutural externo, não se pensando a responsabilidade do próprio jornalista, posto na condição de “demagogo”, espécie de classe de “párias”, sem classificação social precisa (Weber). Mesmo essa responsabilidade terá que ser compreendida estruturalmente, sim, mas a partir das possibilidades reais, e não de uma falsa consciência esclarecida (Sloterdijk). Então, quais as possibilidades reais de um compromisso ético dos jornalistas, sem a participação do Estado? As experiências com os Meios para Assegurar a Responsabilidade Social dos Media mostram a impotência da autorregulação da mídia sem a participação do Estado (Camponez). Os mecanismos deontológicos frustram-se, perante a lógica mercadológica, expondo a tensão entre a filosofia do serviço público e a teoria liberal clássica da imprensa (Esteves).

Assim, diante das responsabilidades políticas do jornalista, enquanto titulares de um direito/ dever de informar, quais são as suas garantias? Onde se alicerça sua liberdade interna de seguir os preceitos éticos da profissão? Qual o elemento de identificação profissional, e quais as suas prerrogativas? Em que consiste o direito de proteção da fonte? Qual a proteção do jornalista contra o assédio moral? Enfim, se a atividade de mediação jornalística persiste, em nossos dias, e se atende a um direito humano/fundamental de informação factual, diária, de orientação social; se o jornalista é um agente político, que executa uma função pública importante, que direitos lhe são assegurados para cumprir o encargo, mandato, responsabilidade?

Sem trocadilhos com a morte do repórter Sean Hoare, cabe lembrar que “a vida do jornalista, entretanto, está entregue, sob todos os pontos de vista, ao puro azar e em condições que o põem à prova de maneira quem não encontra paralelo em nenhuma outra profissão” (Weber). Cabe lembrar ainda que regulação da atividade jornalística não significa necessariamente podar o jornalista. Pode significar, também, libertar.

***

[Veruska Sayonara de Góis é professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte]