Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para ir mais longe no estudo do Jornalismo

Esse texto, essencialmente acadêmico, reúne comentários que fiz ao projeto de tese de doutoramento ‘Crime organizado e mercados financeiros: um estudo a partir das teorias do caos, dos jogos, da informação e das sociedades artificiais’, do jornalista Samuel Pantoja Lima, apresentando no Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção da UFSC (em futuro próximo, desdobrado para Engenharia de Gestão do Conhecimento). Sou o orientador da pesquisa a estou comprometido com ela. Pensei em propor essa publicação ao Observatório de Imprensa pensando em colegas jornalistas que, como o autor da tese, procuram numa pós-graduação outros caminhos que não as habituais reflexões oriundas de Frankfurt, de abordagens psicanalíticas e de vertentes da Antropologia envolvidas com questões de sexo (que chamam de ‘gênero’), etnia etc.

Para os que não gostam de Lógica, teorias oriundas das ciências da natureza e, em particular, para aqueles que desacreditam e contestam a ciência em geral, as proposições seguintes serão revoltantes ou descabidas. Mas alguns, que imaginam o jornalismo como atividade de esclarecimento mais do que de direção das ‘massas’, provavelmente se disporão a encarar as arestas de certos conceitos e descobrir beleza, rigor e esperança nesses caminhos. A defesa de qualificação do Samuel será no início de abril.

1. Nível de participação

Propus o tema a Samuel por ser objeto de constante investigação jornalística e, ao mesmo tempo, de grande importância para a compreensão da sociedade contemporânea.

Nenhuma forma de atividade acadêmica instituída tem sido capaz de dar conta dos vários aspectos que o crime adquiriu nas últimas décadas, com o recrudescimento e globalização do fenômeno das máfias. A criminologia, ancorada constantemente nos estudos de Direito, cuida do assunto com certa ambigüidade, tanto por ser área em que predomina a verdade arbitral sobre a verdade constatada (adaequatio intellectus ad rem) quanto pelo compromisso com as liberdades públicas e alguns privilégios institucionais, como o das igrejas.

No primeiro caso, propõe-se o confronto entre o respeito a essas liberdades e a proteção dos criminosos que conseguem, com sabedoria, escudar-se nelas; no segundo, a contradição entre o livre culto e a generalização do emprego de entidades beneficentes e redes de templos como centros de lavagem de dinheiro – quer se considerem as igrejas mais tradicionais (por exemplo, no episódio do Banco Ambosiano), quer se tomem como corpora seitas de rapidíssima expansão, como as orientais (a do Reverendo Sun é caso típico) ou latino-americanas.

Resta, assim, o jornalismo, que parte do singular para o geral sem o particular que intermedeia essas categorias, em Hegel – e, assim, elimina a ambigüidade na emergência do fato.

Sugerimos, ainda, como orientadores, parte da literatura teórica em que Samuel apóia seu trabalho de investigação. E o fizemos como defensores do projeto de interdisciplinaridade que prevaleceu historicamente no Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção e Sistemas e agora prossegue no Programa de Pós-graduação em Engenharia do Conhecimento, ora em implantação na Universidade Federal de Santa Catarina.

2. Comentários genéricos ao projeto

A modelagem matemática de fenômenos sociais ou socioeconômicos tem sido experimentada muitas vezes, quase sempre conduzindo a frustrações. É o caso da maioria dos esforços realizados a partir da Teoria das Bifurcações e das Catástrofes e da Teoria do Caos.

A primeira dessas abordagens consiste na representação em curvas, em um sistema de controle, das descontinuidades em um sistema objetivo, no qual o acúmulo de quantidades conduz a alteração de qualidade ou aparência relativamente súbita: a água que ferve, o ferro que se parte em dado instante da dilatação por aquecimento, o colapso das bolsas de valores.

A segunda abordagem cuida de situações similares, mas com amplitude e perspectiva distinta: aquelas em que ‘o bater das asas de uma borboleta no Brasil’ pode ‘causar um tornado no Texas’, na expressão consagrada de Edward Lorenz – sistemas dinâmicos apenas aparentemente aleatórios.

Ambas as perspectivas relacionam-se com a Topologia de Poincaré e se complementam com o conceito de fractais, desenvolvido por Benoit Maldelbrot no início da década de 1980 (quando publicou artigo na revista Nature). A primeira observação decorrente desse conceito é costumeira de quem trabalha com artes gráficas em computador: a curva mais suave, se ampliada, aparecerá em sua geometria de arestas. A segunda observação é a de que a extensão de qualquer recorte na natureza amplia-se com a redução da escala de representação (ou observação), de modo a tender ao infinito (o exemplo dado é a costa da Inglaterra que, no limite, apresentará um encontro indefinido de moléculas de sílica, água e plâncton). Uma terceira observação é que a aplicação sucessiva de determinada equação, em séries extensas, ‘naturaliza formas geométricas’, de forma a transformar um triângulo no perfil de um monte áspero e, depois, de um morro em meia-laranja.

A quarta observação, que propusemos há 18 anos, em nossa tese de doutoramento, é que o cérebro humano de certa maneira percebe essas relações, de modo que abstrai do tronco da árvore a forma do cilindro que, por sua vez, é entendido como deslocamento do círculo por um eixo central e perpendicular à sua superfície e, esta, por um ponto que gira à distância fixa do centro – o raio. Realizamos, pois, criativamente, processo inverso, de desfractalização do objeto natural. Como acontece em geral, o fenômeno – a geometria – aparece em inscrições rupestres, gravadas milhares de anos antes do Teorema de Euclides, da mesma forma que a queda dos objetos, percebida por todos, precedeu de milênios a Lei da Gravidade, levando à conclusão de que não se deve confundir o discurso de re – sobre o mundo, com o de dicto – sobre os enunciados.

2.1. A questão da modelagem

O problema com essas modelagens parece situar-se, por um lado, no entendimento, pelos cientistas das áreas de exatas e da natureza, de que a verdade é, de fato, adequação do enunciado ao fenômeno. Tendem, assim, a tomar como verdade o discurso ideológico embutido inevitavelmente nas formulações das ciências sociais e das ciências sociais aplicadas. Dirão, por exemplo, nos Estados Unidos da década de 1970, que o ‘mundo livre’ se opõe ao ‘mundo comunista’; da mesma forma, saudarão, anos depois, a ‘queda do muro de Berlim’ (na verdade, erguido para impedir o trânsito de mercadorias e pessoas entre dois sistemas econômicos incompatíveis – de Berlim Ocidental, com o livre mercado e alguns subsídios políticos a artigos de consumo durável, e a sociedade socialista, com forte subsídio a artigos considerados básicos) como ‘vitória da democracia’. Provavelmente, entenderão que o contexto político atual é o da luta da ‘democracia’ contra as ‘ditaduras’ e do ‘mundo civilizado’ contra o ‘terrorismo’ – sem perceber que essas palavras, na verdade, ou nada designam ou, se têm valor referencial, ele só poderia ser considerado no âmbito da Lógica Difusa, isto é, se admitidos como ‘parcialmente verdadeiros’.

A outra hipótese é ainda mais danosa. Imaginando que as ciências exatas e da natureza obedecem ao estatuto das ciências sociais e ‘humanas’, em que a verdade é histórica (na dimensão da História humana), depende do exercício da argumentação crítica e pode ser mais ou menos adequada a dada realidade, os estudiosos de ciências humanas efetuam o mais estranho carnaval de conceitos quando inserem ‘fractais’, ‘caos’ ou ‘bifurcação e catástrofe’ em seus discursos. Da mesma forma que não se podem medir direitos e deveres, não há como considerar a computabilidade sem levar em conta valores e funções.

O esforço para solucionar esse impasse tem sido mais frutífero no campo das ciências exatas aplicadas – como as engenharias – do que no das ciências humanas, que se nomeiam como única cultura organizadora das sociedades e, por fim, rejeitam a própria aplicabilidade de seu conhecimento na prática do jornalismo, da arquitetura, do design ou da mercadologia. É comum ouvir que estas atividades se fundam em conceitos ‘fora do universo acadêmico’, o que é uma solene bobagem: o apelo à subjetividade dos consumidores (o marketing), por exemplo, está implicado na Teoria da Utilidade Marginal, que data do Século XIX, e as técnicas de apuração do jornalismo moderno derivam diretamente do positivismo lógico – categoria de pensamento que, aliás, os ‘humanistas’ confundem com o positivismo litúrgico de Augusto Comte, para condená-los a ambos, embora as condições de produção dos dois discursos sejam distantes no tempo, no espaço e, principalmente, nas motivações.

Todo esforço deve concentrar-se na construção de conceitos objetivos, realistas e consistentes, no sentido de não-contraditórios.

2.2. Critérios de verificabilidade

Como atingir os objetivos acima?

A primeira medida é levar à radicalidade a crítica dos conceitos. Haverá um ‘crime organizado’ oposto a uma ‘sociedade de direito’? Podem-se distinguir ‘negócios legítimos’ de ‘negócios criminosos’? Quão claras são essas distinções?

Honestamente, creio que nenhum desses rótulos vale como significativo de alguma entidade.

A ‘organização criminosa’, o que quer que seja ou tenha sido em qualquer época, reproduz formas sociais tal como percebidas pelos seus participantes – sendo exemplo disso a incorporação do discurso e das práticas revolucionárias como resultado do convívio com presos políticos brasileiros, na década de 1970.

Já a ‘sociedade legal’ inclui, por exemplo, advogados que não apenas defendem criminosos, mas os aconselham com fórmulas para elidir a lei ou, mesmo, ajudam na consecução da atividade ilícita (a distinção entre ‘ilícito’ e ‘ilegal’ é outra sutileza). No mundo dos policiais, dos fiscais, das instâncias repressoras, há um território cinzento e, muitas vezes, a burla formal da lei é, em si, uma aventura fascinante – em suma, o crime propiciada riqueza e a aventura do risco, em um universo de salários sempre abaixo dos níveis de ambição ou dos estímulos publicitários, bem como de carreiras lineares, que conduzem a patamares medíocres. Da mesma forma que é difícil conformar-se com o ‘não ter’, é trágico reduzir a pujança do ser à toga dos juízes, às estrelas do oficialato ou à continência das sentinelas – símbolos cada vez menos significantes..

O crime está perto, é fácil, lucrativo. O risco, em si, é uma atração – um atrator?

Mas pode-se ir mais longe. Se não fosse o território cinzento, o crime não sobreviveria. Não há como entender o tráfico sem o cliente, que a lei não pune, e sem o trânsito de grandes massas de dinheiro, que os ‘agentes da lei’ não vêem ou, o que é mais comum, fingem não ver, até por uma questão de sobrevivência.

Então, se não há ‘crime organizado’ oposto a uma ‘sociedade legal’, nem ‘estado paralelo’ apartado do ‘estado de direito [ver nota ao final do parágrafo]’; se o crime (por exemplo, o tráfico de drogas, de valores e de armas) é e foi estimulado por estados imperiais (por exemplo, na guerra fria contra a União Soviética, quando as máfias russas foram alimentados e subsidiadas até se tornarem o que são hoje; nas guerras quentes contra os nacionalismos orientais e o mundo islâmico, em episódios bem documentados, como os companhia aérea mantida pela CIA no Cambodja para traficar drogas ou do episódio Irã-Contras); se a Justiça não pode, objetivamente, alcançar os banqueiros, os milionários de fortuna impossível, como Murdoch ou Berlusconi, reverendos e bispos; se é preciso manter o contrabando em Ciudad del Este para que o Brasil tenha meios de se abastecer minimamente do que não produz em caso (previsível) de bloqueio externo – enfim, se tudo é dessa forma, que sentido têm essas dicotomias senão ocultar a realidade? E, se ocultam a realidade, de que serviria um modelo calcado nelas? [ Nota: É fantástica a literatura recente sobre corrupção eleitoral, em toda parte. No Brasil, observe-se como é estranho o economista Roberto Campos ter sido eleito senador por Mato Grosso, com toda a sofisticação de seu discurso, e Henrique Meirelles deputado (mais votado) por Goiás, após décadas de ausência presidindo o Banco de Boston? E, nos Estados Unidos, não é curiosa a ‘vitória’ de George W. Bush na Florida, justamente a capital mundial da lavagem de dinheiro e do contrabando para a América Latina, tolerado e desenvolvido com apoio governamental após a revolução cubana e no período de desestabilização do Estado brasileiro?]

Enfim, se o capitalismo, na sua luta pela sobrevivência, contagiou-se em nível que parece impossível de reverter, misturando garantia máxima e lucro mínimo com garantia mínima e lucro máximo nos pacotes de investimentos – sem limites éticos que, além fantasiosos, foram suscitados quando essa irreversibilidade se tornou evidente – então devemos buscar outra modelagem.

Penso em um sistema contínuo em que os dois conteúdos – ‘criminal’ e o ‘legal’ se misturam, no mesmo instante em que os poderes da economia monetária, que controlam, em última instância, os Estados, se revestem de mensagens fundamentalistas (do cristianismo, do islamismo, do judaísmo) e confrontam vertentes pragmáticas em que se transformaram os discursos socialistas e do Terceiro Mundo. Como se configura essa massa, em que há partes definidas, partes indefinidas e trânsitos entre elas? Será o caso de se considerar a dificuldade extrema de separação dos componentes dessa mistura (como o café e o leite), conduzindo a episódio de ruptura (é impossível não lembrar as últimas décadas do Império Romano, descritas em textos que Pierre Courcelle recuperou)? [Courcelle, Pierre. História literária das grandes invasões germânicas, tradução do Frei Paulo Evaristo Arns. Petrópolis, Vozes, 1955.] Ou haverá formas de recuperação das diferentes ‘ordens’ embutidas nesse ‘caos histórico’, de modo a colocar sob controle, como antes, as tendências de corrupção e fragilização do poder público que hoje alimentam a cultura hiper-reacionária das ongs, como antes sustentavam a utopia hiper-progressista do comunismo paradisíaco?

Essa é a questão preliminar. Posta a pergunta, a resposta é o mais simples, com todos os problemas técnicos que comporta.

Anotações sobre detalhes

(a) A dicotomia economia real x economia virtual sobrevive? A segunda não se sobrepõe à primeira? A primeira não valida a segunda e a protege de uma total abstração, que nos permitiria suprimi-la?

(b) Miami é um grande centro, talvez o maior ou mais notório, de negócios ilícitos. Parece-me, no entanto, que, para o Oriente, é importante considerar Los Angeles. Quando os produtos de informática eram obtidos por contrabando (tolerado, naturalmente, por autoridades que não tinham poder para enfrentar seus patrocinadores), havia diferença marcante entre os produtos obtidos em Miami (de limitada tecnologia) e os de Los Angeles (de tecnologia mais sofisticada). Esses não estavam autorizados para o Brasil.

(c) A relação entre ‘jogo do bicho’ e ‘organização criminosa’ tem sido sempre suscitada, mas não suficientemente comprovada e seu destaque pode ser outra dessas manobras retóricas de ocultação. Não se sabe, por exemplo, se o jogo do bicho no Rio de Janeiro é mais comprometido com o crime do que as estruturas da polícia e da Justiça do Estado. Se repetido o raciocínio quanto ao Espírito Santo, a resposta favoreceria os bicheiros, certamente.

(d) No emprego do modelo de Shannon-Weaver a procedimentos humanos, é conveniente considerar a questão da percepção – a natureza totalizante, premonitória, de hipóteses sucessivas – que preside a representação subjetiva da natureza e dos discursos. Sugiro o recurso a outro modelo, o de Gerbner (1956).

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Jornalista, professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina