Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Censurar biografias fere a Constituição

A Constituição brasileira consagra, de forma inequívoca, a liberdade de expressão e de imprensa, bem como o direito à informação. No entanto, tais princípios não estão livres de, por caminhos enviesados, serem objeto de ataques, agravos e desobediência a partir de singulares interpretações de dispositivos legais cujo espírito se choca com o pressuposto das garantias ao cidadão que a Carta avaliza. É o caso das iniciativas que visam a impedir a publicação de informações e imagens de pessoas públicas em obras biográficas não autorizadas.

O dispositivo que tem servido de anteparo a manifestações explícitas de censura, a pedido de biografados ou seus herdeiros, é o artigo 20 do Código Civil. Criado para proteger a intimidade, cuidado legítimo, esse capítulo legal, por sua abrangência, acaba por embasar arguições na Justiça que têm por fim impedir a livre circulação de informações. A legislação não define com clareza o limite entre o direito à privacidade e o direito à informação sobre pessoas públicas. Como a Justiça não tem jurisprudência sobre o assunto, a controvérsia abre espaço para claros agravos ao artigo 5º da Constituição, com prejuízos à memória e à cultura do país.

Por conta disso, tribunais têm tomado decisões que consagram a censura. Caso dos autores Paulo César de Araújo e Alaor Barbosa, cujas biografias de Roberto Carlos e Guimarães Rosa foram recolhidas. O escritor Ruy Castro também enfrentou problemas na Justiça com a família de Garrincha, o biografado. O autor de um livro sobre Raul Seixas igualmente foi demovido de publicar a obra, sob pena de ser acionado legalmente. O cerceamento ao trabalho de preservar a memória cultural do país levou o escritor Lêdo Ivo a fazer um desabafo público contra a condução do espólio literário de Manuel Bandeira, controlado por herdeiros indiretos do autor de ‘Vou-me embora pra Pasárgada’.

Direito à informação

Há caminhos para superar essa discrepância legal. Na legislatura passada, o então deputado Antonio Palocci, atendendo a pedidos de escritores, intelectuais e jornalistas, apresentou um projeto de lei que altera os dispositivos do Código Civil que dão suporte a ações para impedir a circulação de biografias não autorizadas. O projeto, que teve parecer favorável do também deputado José Eduardo Cardozo, foi arquivado porque Palocci e Cardozo, hoje colegas de Ministério, deixaram a Câmara. Mas outros dois projetos tramitam na Casa com o mesmo objetivo. Há ainda a possibilidade de o STF ser levado, por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade, a se posicionar sobre a efetiva abrangência do artigo 20 do Código.

Qualquer que seja o caminho, é fundamental que prevaleça o espírito da Constituição. É inaceitável filtrar a História, castrar a memória nacional ou simplesmente querer tirar proveito de direitos autorais de parentes famosos, como parecem querer alguns que recorrem à Justiça para impedir lançamento de livros. Além de ferir princípios constitucionais que claramente proíbem a censura, tais iniciativas empobrecem a cultura do país e de fato sonegam à sociedade o direito à livre informação.