Se Marx nos disse alhures que a história emerge como tragédia para se repetir como farsa, penso que os acontecimentos pós-modernos podem ser analisados ao contrário: eles surgem como farsa e se repetem como tragédia. As histórias pós-modernas são sempre farsantes e trágicas porque não cessam de serem clones de si mesmas: a farsa da tragédia e a tragédia da farsa; a farsa na tragédia e a tragédia na farsa. Tudo, ao mesmo tempo agora, recheado de indiferença, mentira, hipocrisia como ingredientes da farsa, por um lado; e, de outro lado, por violência de toda sorte e espécie, como traço indistinguível da tragédia.
É, pois, assim que pode ser analisado o escândalo suposto em torno do segundo maior império midiático do planeta, o do grupo Murdoch, com seus ingredientes de inevitável farsa a se misturarem com elementos trágicos. A farsa do indissolúvel e leviano vínculo entre empresas midiáticas, como a News of the World, da Inglaterra, com a farsante seriedade da então imaculada Polícia Metropolitana inglesa, a Scotland Yard. A farsa de um farsante mafioso dono de um gigantesco conglomerado midiático, o arrivista australiano Rupert Murdoch, com empresas concentradas sobretudo nos Estados Unidos e Inglaterra, como a Fox e The Wall Street Journal, nos Estados Unidos; e The Times, The Sun e News of the World, na Inglaterra, além de outras filiais e servis seguidoras pelo mundo afora.
A farsa é regra geral
É por isso que é farsa a tragédia dos crimes cometidos pela News of the World, porque é ridículo supor ou acreditar que é crime isolado, feito por um suposto empresário inescrupuloso. O crime é regra geral no capitalismo; é sua tragédia generalizada, embora sempre o esconda, o dissimule através da criação de bodes expiatórios como partes inextrincáveis da farsa nossa de cada dia.
O capitalismo é também farsante e produz sua historicidade trágica através de um duplo estado de sítio: o estado de sítio da normalidade e o da anormalidade. Em nome de seu estado de sítio normal, da mais-valia cotidiana, ele produz toda sorte de estados de sítio de supostas anormalidades, como o estado de sítio do terrorismo, do narcotráfico, das ditaduras burocráticas, fascistas ou o estado de sítio da investigação jornalística, como no caso do News of the World, que julgou poder – como farsa de um soberano absoluto – dizer tudo, fazer tudo, imiscuir-se em tudo, em nome da liberdade de expressão dos soberanos ocultos, donos do vale tudo das práticas conspiratórias.
Em nome do farsante estado de sítio, chamado de democracia burguesa, o capitalismo produz o estado de sítio das prisões clandestinas pelo mundo afora; o estado de sítio das guerras imperialistas na Ásia e na África; o estado de sítio dos golpes militares na América Latina, o estado de sítio da corrupção na periferia do sistema mundo e tantos outros estados de sítio trágicos, genocidas. O capitalismo é o próprio estado de sítio, do capital, razão pela qual o argumento de Walter Benjamin, em suas Teses Sobre o Conceito de História, é preciso: “A tradição do oprimido nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na realidade regra geral.”
Essa é a única tragédia que nos toca superar, a de que vivemos sob o signo de um estado de exceção mantido para circunscrever uma sociedade de oprimidos. O oprimido é, pois, a tragédia do mundo, a única, porque histórica, porque absoluta, porque condiciona todas as outras. É por isso que a farsa é também regra geral, no capitalismo: porque ela serve para disfarçar a tragédia da tradição do oprimido. É também por isso que as tragédias todas que não se apresentem como tragédias de oprimidos são farsas, porque igualmente servem para esconder o estado de exceção da tradição do oprimido, que é regra geral.
A polícia da tradição do oprimido
Parto, assim, do princípio ou precipício de que, com Walter Benjamin, vivemos sob o signo do estado de exceção, porque somos o resultado civilizacional de uma longa história humana de opressão, de humilhação e extorsão da riqueza comum. Uma civilização, como a atual, a do capitalismo-mundo pós-moderno, só se mantém através de um trágico estado de exceção bélico-midiático-publicitário; bélico porque usa a força militar, econômica, cultural, epistemológica para matar e intimidar os condenados da terra, 2/3 da vida do planeta; midiático porque faz uso de um intrincado, complexo e planetário sistema de comunicação baseado na mentira, pois antes de tudo mente sobre a verdade inicial, a de que a dimensão bélica de nosso estado de exceção está dizimando cruelmente a vida na Terra, sem piedade, de forma sanguinária e parasitária; publicitária porque a propaganda, como dizem, é a alma do negócio e o negócio é o de sempre: manter o luxo e o exibicionismo de uma elite idiota, pretensiosa, estilizada, arrogante e violenta, que faz uso da autopropaganda para esconder o óbvio, o controle que ela tem da máquina bélica e da máquina midiática e o uso pernicioso e genocida que faz desse duplo controle; matar, matar, matar, enquanto sorri publicitariamente, e inventa notícias.
Se o nosso estado de exceção é bélico-midiático-publicitário é porque é assim que mantemos a tradição do oprimido; é assim que oprimimos e igualmente é assim que nos conectamos com a sentença que inicia o romance O Processo, de Franz Kafka, “Alguém havia caluniado Joseph K…”, pois, na tradição do oprimido, todos somos, em maior e menor medida, caluniados. Todos somos suspeitos de crimes que não cometemos e por isso todos estamos detidos: o estado de exceção capitalista é a cadeia que nos prende, calunia, investiga; grampeia nosso número de identidade, de telefone, da carteira de motorista; o chip de nossos celulares, assim como rastreia nossos computadores individuais e, mesmo se usamos software livre, nos mapeia quando usamos plataformas Net, Chrome, redes sociais, blogs, Google; quando somos a sujeição social de sermos o que temos sido: previsibilidades subjetivas da tradição do oprimido, ora ocupando o lugar de opressores, ora de oprimidos, ora de indiferentes diferentes ou – para continuar com o paradoxo – normais anormais, o tipo mais comum no horizonte entorpecido do estado de exceção pós-moderno, porque o epicentro do estado de sítio capitalista não está na periferia do sistema, mas nos países que vemos como civilizados, por supostamente serem democráticos, por serem – essa é a farsa-mor – os exemplos clássicos da liberdade de expressão; por, enfim, possuírem um sistema midiático tragicamente independente dos oprimidos do mundo, mas dependente até a medula do dinheiro advindo da rapina do farsante complexo industrial-militar-financeiro do capitalismo atual, a impor sem piedade a tragédia do toque de recolher – logo o tudo é possível – sobre iraquianos, palestinos, líbios, somalis, colombianos, afegãos, paquistaneses e todos os miseráveis da terra.
O caso noticioso em torno do escândalo do jornal inglêsNews of the World, com todos os elementos de um romance policial, não é, portanto, uma exceção do sistema de comunicação dos chamados países civilizados, mas regra geral; é prova cabal de que é assim que o estado de exceção pós-moderno funciona: conectando corruptores e corrompidos através da trágica farsa de um sistema de comunicação, que é a polícia da tradição do oprimido, muitas vezes com mais poder que a polícia de fato, o que ficou evidente com o caso da polícia metropolitana de Londres, a Scotland Yard, que demonstrou estar submetida ao oligopólio midiático, a serviço dele.
Nos bastidores da trama cabeluda
Já não é possível saber, assim, quem nasce primeiro, se o ovo ou se a galinha; se a política midiática ou a polícia enquanto tal; se a farsa corrompida do governante, como a do primeiro-ministro inglês, David Cameron, com sua farsante amizade com o mafioso Murdoch, ou se a tragédia de um sistema de comunicação que vigia, ausculta e se mete em tudo, porque existe para isso, no nosso estado de sítio neoliberal; existe para colocar a nu os pobres diabos do mundo.
Se para alguma coisa nos serve esse escândalo cheio de farsas e tragédias, em torno do sinistro Murdoch, da fascista Scotland Yard e do mafioso David Cameron, certamente não é para nos escandalizarmos, mas para evidenciarmos, sem meias palavras e meias verdades, que o centro do poder planetário – ainda os Estados Unidos e a Europa – é também o centro farsante e trágico da corrupção, do genocídio, do despotismo, da intriga, do ocultismo, da banalidade do mal, por ser o centro do toque de recolher imposto sobre os oprimidos do mundo atual. Eles, sim, são a república das bananeiras. Eles, sim, são os ditadores. Eles, sim, são corruptos. Eles, sim, são nepotistas. Eles, sim, são fanfarrões farsantes. Eles, sim, são mentirosos e demagogos. Eles, sim, espalham, como estratégia, essas e muitas outras pragas pelo mundo afora. Eles, sim, apontam o dedo acusatório para a periferia do sistema como parte inevitável da fraude que são e realizam sem cessar.
Como parte desse sistema de exceção, do e para o vale tudo de fraudes, o grupo Murdoch, a Polícia Metropolitana de Londres e o próprio Cameron não passam de os caluniados da vez, de modo que a pergunta a ser feita não é se é verdade ou não se são culpados dos crimes de que são acusados, mas o que está em jogo nos bastidores da trama cabeluda do estado de exceção bélico-midiático-publicitário contemporâneo. O que está em jogo é saber quem e por que calunia Murdoch, Cameron e a Scotland Yard.
Provando do próprio veneno
Aí, as hipóteses investigativas se abrem num leque de possibilidades. Será que a acusação de que são ao mesmo tempo verdugos e vítimas não faz parte de um fogo amigo ou dos republicanos ou dos democratas americanos: o fogo amigo da discussão em torno da elevação do teto da dívida que os Estados Unidos têm com o mundo? Será que a ousadia de acusar figuras tão protegidas pelo estado de exceção pós-moderno, de pô-las sob investigação, não é a própria elevação do teto do vale tudo desesperado do imperialismo americano-sionista?
Diante da falência do projeto americano-sionista de dominar todo o mundo para saqueá-lo, evidenciado com as derrotas das guerras no Iraque, no Afeganistão, no Paquistão, no Iémen, na Somália, na Líbia, será que não estaremos entrando numa época de elevação do teto do fogo amigo, tal que as acusações, intrigas, mentiras e chantagens passarão cada vez mais a respingar numa peça ou noutra do central jogo de xadrez americano-europeu-sionista? Será que essas farsantes intrigas todas não evidenciam o óbvio: a situação de subserviência da Europa – dentro da qual nem a Inglaterra escapa – como exemplo cabal da verdadeira e única derrotada na guerra do imperialismo americano-sionista contra o mundo, a derrota dos europeus? Por acaso as crises grega, espanhola, portuguesa, italiana – a crise da Euro-zona – não são consequências diretas do fogo amigo americano-sionista-belicista-financeiro?
Então, diante da evidente dificuldade de saquear o mundo não europeu, para dar lastro sem fim ao teto do estado de exceção do projeto americano de dominação do mundo, a própria Europa passou a ser o principal foco da guerra americano-sionista? Quer dizer que os pais fundadores, os europeus, do capitalismo contemporâneo, começam a provar do próprio veneno?
Diante do processo disso tudo, uma derradeira questão, em diálogo com Franz Kafka, emerge: Alguém havia caluniado a Europa, pois numa manhã ela foi detida, sem ter feito mal algum?
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]