Candice Soldatelli soltou a lebre em artigo neste Observatório da Imprensa (ver ‘A falsa noção de local e de global‘): admirar outros povos, outras culturas, buscar inspiração para aperfeiçoar meu espaço: que mal há nisso? A discussão girava em torno do que é local e global. Várias pesquisas já demonstraram que, cada vez mais, os assuntos locais despertam maior interesse do público do que os assuntos globais.
Mas a literatura tem trazido à tona em todos os tempos que a universalidade temática ainda consegue exercer um predomínio extraordinário, cativante, quer no âmbito literário quer no jornalístico. Veja-se Shakespeare no segundo quartel do século 17. E veja-se Khaled Hosseine, autor do belíssimo romance O Caçador de Pipas (2003). Na obra de um e de outro há dois fatores universais relevantes (para a época e local) que despertaram a comoção mundial: os sentimentos humanos surpreendentes e a inocência. Quando Romeu e Julieta veio à tona imaginava-se, na Inglaterra daquela época, que a profundidade das relações entre um homem e uma mulher não chegaria a tal estágio.
No Caçador de Pipas, o autor não poderia supor que o magnetismo de um gesto tão simples e inocente, uma brincadeira tão corriqueira entre crianças, soltar pipas, relato produzido de uma forma tão simples, da sua época já turbulenta no Paquistão, adquirisse tão grande ressonância em meio a agudos contrastes sociais.
Uma nova linguagem
A linguística estabelece uma diferença sutil entre o global e universal. Há gestos globalizados pelos satélites bem antes universalizados pela natureza humana.
A internet desbloqueou para o planeta os assuntos até antes dela temas virgens para a humanidade, como a vida animal nas ilhas do Ártico e do Atlântico. Embora bem antes dela os satélites já tivessem desnudado quase todos os mistérios da terra, é essa universalidade que continua a dar as cartas no âmbito do jornalismo e da literatura. Com uma diferença fundamental: no âmbito da literatura, ou especialmente da ficção, o local e o global continuam engolidos pela imaginação dos autores, cujos limites foram rompidos desde os tempos bíblicos.
Por temas globais, entendam-se aqueles que são citados em todo o planeta sem distinção de entendimento; por temas universais, entendam-se aqueles intergaláticos, mais orquestrados com níveis de linguagem que ultrapassam satélites.
A maior contribuição que a ficção tem dado à humanidade é a exploração do desconhecido. E quando o desconhecido se popularizou no século passado, com autores como Gabriel García Márquez (seria impossível construir Cem anos de solidão sem um novo estilo, o realismo fantástico), percebeu-se que seria possível contar as mesmas histórias ou narrar os mesmos fatos com uma nova linguagem. Foi essa nova linguagem testada pela imprensa espanhola e argentina e cujos resultados foram surpreendentes: cresce a circulação dos jornais com o aparecimento de um novo tipo de leitor para um novo tipo de imprensa: aquela que envolve os sentimentos dos seus leitores, e não só os temas locais e globais.
Temas universais continuam dando as cartas
Em toda parte do planeta o tamanho da tiragem e a circulação dos jornais tem sido uma preocupação constante. Não é à toa que, de meados do começo do século até 1975, a partir de quando o desmatamento das florestas era em parte justificado pela produção de papel, o alcance das tiragens pautava-se pelo fornecimento do papel no mercado internacional. Se a internet mudou totalmente esse panorama, que já era seguido pelo plantio de novas florestas exclusivamente destinadas à produção de papel, a mesma preocupação não se deu com a inserção massiva do público leitor de jornais e de livros, conduzindo-se a perspectiva do fim da impressão de um e do outro. Tal alvoroço obrigou ao início de um novo périplo editorial, as edições virtuais, que ganham força e expressão, passando-se até a alugar livros clássicos e raros pela internet e até a construção da maior biblioteca virtual do planeta, a Estante Virtual.
Portanto, enquanto o mercado editorial de livros e jornais vive hoje uma verdadeira turbulência sob o impacto das transformações, já tendo superado sua primeira crise indicativa do seu fim com o surgimento da internet, busca-se ainda resolver um velho dilema segundo o qual digladiam-se os temas locais e globais, ao passo que os universais continuam dando as cartas. É aprender a explorá-los.
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Jornalista, escritor e editor do site da AALONG