Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Uma entrevista bizarra

Carlos Wagner certamente é um dos mais experientes – e melhores – repórteres do jornalismo brasileiro. Por isso, tento entender por que resolveu entrevistar o senhor Ricardo Neis, o homem que atropelou vários ciclistas em Porto Alegre, em fevereiro, abrindo caminho com seu Golf acelerado, numa espécie de boliche com pinos humanos. A cena do atropelamento correu o mundo e, confirmando o clichê, podemos dizer que uma imagem vale mais que mil palavras. O que assistimos no vídeo amador não foi uma mera fuga para escapar de uma turba enfurecida, como Neis tenta justificar em sua defesa: o que vimos foi mais um louco no trânsito com seu carro possante passando por cima de todas as leis, talvez com a certeza da impunidade.

Nos meios obscuros do judiciário brasileiro, e de alguns escritórios de advocacia endinheirados, muitos já sabem como transformar uma polêmica em lucro certo: basta pressionar a imprensa. Nas pequenas entrelinhas das liberdades individuais e dos direitos humanos, talvez a equipe que tenta defender Neis possa ter encontrado em algum trecho de alguma notícia algum deslize por parte dos jornalistas. Qualquer linha que denunciasse um julgamento público do atropelador fora dos tribunais pode fazer com que jornalistas – e seus patrões – respondam a um processo e tenham que pagar uma polpuda indenização por danos morais.

Não seria isso uma espécie de mordaça? Não se pode mais, simplesmente, narrar os fatos tais como eles o são sem o medo de ter de responder a um processo judicial? Não se pode mais assistir a um vídeo chocante, ter o depoimento de dezenas pessoas nas entrevistas após o atropelamento, para dizer que Neis agiu de forma injustificável e que poderia ter matado alguém?

Que interesse há em ouvir novamente este cidadão e colocá-lo numa chamada de capa do jornal Zero Hora?

Na cadeia

Na matéria, publicada também no portal ClicRBS, podemos ler o seguinte:

‘As pessoas me olham como se fosse um monstro’, diz atropelador de ciclistas na Capital

Ricardo Neis falou a Zero Hora sobre sua rotina após acidente

O tom é de total ‘coitadismo’ e quase se pode perceber que há uma tentativa de humanizar a figura do motorista enlouquecido que atropelou 15 ciclistas no centro de Porto Alegre. Contudo, quem assistiu às imagens na internet e na televisão poderia ter outra visão que não a de um monstro? E mais: a quem interessa saber a rotina de Ricardo Neis, já que o fato aconteceu há mais de dois meses?

Creio que algumas hipóteses possam ser levantadas já que o autor da matéria publicada neste sábado, dia 7 de maio, é Carlos Wagner (fosse outro repórter, eu não me arriscaria a opinar sobre o tema). Ele jamais cairia no golpe da ‘vítima da condenação pública’, como Ricardo Neis tenta posar.

Wagner, experiente que é, conseguiu acertar dois alvos com um só golpe. Primeiramente, dando voz ao supostamente ‘injustiçado’ Neis, ‘execrado’ pela opinião pública, acalmou os ânimos e as ânsias dos advogados do atropelador, provavelmente já a postos para morder os calcanhares do grupo RBS pela cobertura dada ao caso no mais importante conglomerado de mídia do Sul do Brasil. Num segundo momento, de gravador em punho e com as perguntas certas, Carlos Wagner não apenas conseguiu confirmar que Neis fez tudo de caso pensado, como também acabou por provar que este sujeito é violento e deveria estar na cadeia.

A parte da imprensa

Mostrando – ou fingindo – real interesse pela rotina do atropelador, Wagner conseguiu que Neis fizesse afirmações bizarras como ‘Eu peguei a machadinha, que estava do lado do meu assento, e me defendi’, numa referência a uma briga que teve com uma ex-namorada, que teria agredido Neis com um facão. Machadinhas e facões não fazem parte da rotina de nenhum cidadão normal a não ser que este seja um lenhador ou um bandeirante do século 17. Wagner vai adiante e consegue encurralar o entrevistado abordando seu histórico de contravenções no trânsito e arrancando outras ‘confissões’, como a justificativa de andar com uma machadinha debaixo do banco do carro porque, por morar próximo a uma vila, precisava ‘de alguma coisa para me defender, em caso de ataque’. Qualquer leigo no assunto percebe que se trata de um sujeito com sérios problemas de conduta, incapaz de conviver normalmente em sociedade.

Ter que novamente ver o rosto de Ricardo Neis num jornal diário tentando se defender foi, à primeira vista, revoltante. Contudo, imagino que nos bastidores era sabido que tal matéria viria a serviço da sociedade, seja para não deixar o caso ser esquecido (devidamente retomado com infográficos e com o tradicional textinho ‘Entenda o caso’), seja para sinalizar que existe uma manobra jurídica em andamento para livrar a cara deste criminoso. Foi apenas uma questão de sorte que nenhuma vida tenha sido perdida no atropelamento dos ciclistas. Será uma questão de negligência por parte da Justiça se Neis não sofrer punição alguma. A imprensa, de certa forma, está fazendo a parte dela, mantendo o assunto em evidência.

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Professora, tradutora e bacharel em Comunicação, São Marcos, RS