Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Miséria versus miséria

Uma grande revista americana expõe, em fotos que ficaram famosas mundo afora, a miséria numa favela carioca. dar uma resposta ao ‘imperialismo americano’, uma das maiores revistas brasileiras revida, com uma reportagem mostrando a pobreza de uma família num cortiço de Nova York. Foi o ponto de partida, em plena Guerra Fria, para debate ideológico, social – com direito a arrecadação de fundos nos EUA – e de ética no jornalismo.

O ano era 1961, e os EUA nutriam preocupação crescente com o avanço da esquerda na América Latina. A Casa Branca temia que o governo de João Goulart transformasse o Brasil em uma nova Cuba. E os brasileiros, incomodados ingerência americana na política nacional, desejavam mostrar que a pobreza não era exclusividade daqui, aconselhando os vizinhos do norte a olharem para o próprio quintal.

Essa história, que teve como protagonistas as revistas Life e O Cruzeiro, é relembrada por uma nova pesquisa Fernando de Tacca, professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Unicamp, que ganhou ela o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia/Funarte, no ano passado.

Tacca analisou a reportagem da Life que traz uma imagem do carioca Flávio da Silva, 12 anos na época, alçado fama ao ser fotografado doente e deitado numa cama na Favela da Catacumba, na Lagoa. Ele estudou, também, revide de O Cruzeiro, a melhor revista brasileira da época, que publicou pouco depois a manchete ‘Repórter Ballot descobre em Nova York um novo recorde norte-americano: MISÉRIA’.

Ângulos semelhantes

Com o título ‘Uma família castigada numa favela do Rio. O temível inimigo da liberdade: pobreza’, a Life de junho de 1961 apresentou ao mundo a história da família de José Manuel da Silva e Nair Germana da Silva. Com filhos, o casal morava na comunidade da Catacumba, que, após a remoção dos seus cerca de 10 mil habitantes anos 70, deu lugar ao Parque da Catacumba.

Acompanhado do jornalista brasileiro José Gallo, o fotógrafo americano Gordon Parks passou dias observando da família de retirantes nordestinos. Focou o seu olhar no menino Flávio, de 12 anos, que, mesmo asmático, cuidava dos irmãos menores e das tarefas domésticas.

Na reportagem, os Silva são apresentados como um exemplo de pobreza que pode ser encontrada também Venezuela, Chile, Bolívia e Equador e que implica ‘perigo acentuado’. ‘Na maior parte aglomerados em bolsões largamente distribuídos nos morros das cidades, onde a abundante pobreza se torna campo fértil para a exploração política comunista e castrista’, disse a revista.

A reportagem sobre o Brasil foi a segunda de uma série de Life sobre a América Latina. A primeira tratava da ascensão de Fidel Castro em Cuba, com analogia às Ligas Camponesas brasileiras, lideradas pelo então líder comunista Francisco Julião – que, do fim dos anos 50 ao golpe militar de 1964, tentou implantar a reforma agrária no país, para temor americanos. A terceira reportagem abordou a Bolívia.

– O objetivo ideológico da Life era alertar para o avanço dos movimentos populares na América Latina e sua influência no sucesso da Revolução Cubana – explica Tacca.

O pesquisador ressalta, também, a relação da reportagem com o acordo conhecido como Aliança para o Progresso, tema de uma reunião dois meses antes. Idealizada pelos EUA, e tendo como pano de fundo a Guerra Fria, a Aliança previa investimentos na América Latina para promover o desenvolvimento regional, tentando conter o avanço comunismo e a influência de Fidel Castro no continente.

Tacca explica que, para a Life e o governo americano, a pobreza era o berço preferido da temida proliferação ideologia esquerdista. A reportagem sobre a Catacumba foi publicada numa época em que a política externa brasileira preocupava os EUA, com os presidentes Jânio Quadros e João Goulart – este último, derrubado pelos militares simpáticos a uma aproximação com países comunistas.

A reportagem de Life, publicada também na edição em espanhol, comoveu os americanos, sensibilizados com a imagem do menino Flávio. Sua fotografia foi publicada ao lado de outra, em que o corpo de uma suposta vizinha do garoto num caixão.

A revista organizou uma arrecadação de dinheiro nos EUA para ajudar a criança, levada àquele país para fazer tratamento. A família do garoto ganhou uma casa própria e mobiliada, fato noticiado por grandes jornais brasileiros da época. A fez nova reportagem sobre a recuperação de Flávio, que apareceu sorridente na capa da edição de 21 de julho de e a nova vida de sua família.

Mas a denúncia da miséria no Rio mexeu com O Cruzeiro. A revista enviou o fotógrafo Henri Ballot para Nova York com a missão de mostrar que também havia miséria nos Estados Unidos. Na cidade, a publicação mostrou, em com ângulos semelhantes aos usados pela reportagem da Life, a vida de uma família porto-riquenha num cortiço e infestado por insetos e ratos. ‘A miséria não é exclusividade nossa’, dizia o texto de 7 de outubro de 1961.

Ética questionada

Como a rival americana, O Cruzeiro destacou a vida de um dos filhos da família, Ely-Samuel Gonzalez, de 8 anos. seu corpo magro de subnutrido é coberto de feridas, roído por baratas que invadem sua cama cada noite’, escreveu, destacando uma fotografia em que o garoto aparecia deitado coberto de baratas, em alusão à imagem de Flávio Silva na Life.

A reação de O Cruzeiro gerou um debate sobre a ética do fotojornalismo. A revista ‘Time’ publicou, poucos dias a edição brasileira, reportagem questionando a postura do fotógrafo brasileiro Henri Ballot. Ele foi acusado de ter montado a foto em que Ely-Samuel aparece dormindo com baratas no cortiço em Nova York.

A Time relatou o polêmico embate entre Life e O Cruzeiro em reportagem com o título ‘A imprensa: vingança carioca’.

‘O fato é que a fotografia mais comovente de Ballot – a de Ely-Samuel, frágil filho de 8 anos de Gonzalez, dormindo num colchão imundo e com aparentes baratas em seu corpo – fora posada. O fotógrafo capturou e distribuiu baratas com esse objetivo’, denunciou a Time, que enviou repórteres para conversar com a família porto-riquenha retratada por Ballot.

A revista O Cruzeiro não contra-atacou a reportagem da Time. ‘O que, de certa forma, é uma aceitação da versão americana’, escreve Tacca na pesquisa.

Após fazer as polêmicas imagens sobre a miséria americana e ter sua ética questionada pela Time, Ballot foi proibido de voltar aos EUA, num momento de acirramento da Guerra Fria.