Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sobre imagens cruas

‘Uma bala tinha entrado ao lado do nariz, saíra pela fronte oposta, e desfigurava horrivelmente o cadáver; tinha ficado com um olho aberto.’


Não, leitor, não se trata de testemunho do fim de Osama Bin Laden, mas de relato ficcional de uma batalha ocorrida 196 anos antes: Waterloo. Está no romance A Cartuxa de Parma, de Stendhal. O escritor descreve o horror sentido pelo protagonista, Fabrice del Dongo, diante do cadáver de um soldado que, atravessado no caminho, fizera estacar seu cavalo.


Nesses célebres capítulos iniciais, que mostram Fabrice completamente perdido em meio ao combate que liquidou a carreira de seu herói, Napoleão Bonaparte, Stendhal não poupa tinta para descrever os horrores da guerra:




‘O que lhe pareceu horrível foi um cavalo banhado em sangue que se debatia sobre a terra lavrada, metendo as patas nas próprias entranhas; queria seguir os outros. O sangue corria sobre a lama’. (…) Um desagradável espetáculo esperava o novo soldado: estavam a cortar uma coxa a um couraceiro, belo moço de cinco pés e dez polegadas de estatura. Fabrício fechou os olhos e bebeu quatro copos de aguardente a fio’. (A tradução é do português Adolfo Casais Monteiro, primeira edição em 1957.)


Narrativa fiel


De onde vem esse realismo impiedoso, tão presente, ao longo do tempo, em obras de arte, e, notadamente, a partir de certo momento do século 20, em filmes ou cenas chocantes feitos por bons diretores? (Ignoram-se aqui a subliteratura e todas as demais formas artísticas, ou abaixo disso, de vocação eminentemente comercial.)


Num ensaio célebre, ‘O ouriço e a raposa’, Isaiah Berlin menciona a dívida de Tolstói com Stendhal:




‘Nada jamais foi tão elogiado por soldados ativos do que os esboços de episódios de guerra em Tolstói, suas descrições de como as batalhas parecem àqueles que delas realmente se ocupam. (…) Sem dúvida, Tolstói tinha razão em declarar que devia muito dessa luz fria a Stendhal’. (As citações de Berlin são tiradas de Estudos sobre a humanidade ‒ uma antologia de ensaios.)


Stendhal, por sua vez, também teria uma magna dívida intelectual e artística. Berlin prossegue:




‘Mas há uma figura por trás de Stendhal ainda mais fria, ainda mais destrutiva, de quem Stendhal talvez tenha tirado, pelo menos em parte, seu novo método de interpretar a vida social’ (…).


Trata-se de Joseph de Maistre. O ensaio contém numerosas e ricas aproximações entre esses três escritores ‒ Maistre, Stendhal e Tolstói ‒, mas principalmente sobre o pensamento do primeiro, objeto de outro ensaio de Berlin cujo título fala por si só: ‘Joseph de Maistre e as origens do fascismo’ (publicado em Limites da Utopia; ver citação em ‘Observatório vira inspiração da redação do Enem‘).


Em ‘O ouriço e a raposa’, Berlin descreve:




‘Maistre concebia a vida como uma batalha selvagem em todos os níveis, tanto entre as plantas e os animais como entre os indivíduos e as nações, uma batalha da qual não se esperava nenhum ganho, mas que se originava de algum desejo primitivo, misterioso, sanguinário, autoimolador, implantado por Deus. Esse instinto era muito mais poderoso do que os esforços fracos dos homens racionais que tentavam alcançar a paz e a felicidade (o que não era, em todo caso, o desejo mais profundo do coração humano ‒ apenas de sua caricatura, o intelecto liberal) planejando a vida da sociedade sem contar com as forças violentas que mais cedo ou mais tarde causariam inevitavelmente o colapso de suas débeis estruturas como o de tantos castelos de cartas’.


A descrição do cadáver com que se depara Fabrice não seria, portanto, apenas uma decorrência da fidelidade narrativa de Stendhal a uma realidade (des)humana. Seria, ao lado e além disso, fruto de uma escolha artística nutrida por concepções antirracionalistas. O que, é claro, não diminui a grandeza da obra-prima.


Um não mostrar humanista


Pode ‒ pode, é uma possibilidade ‒ haver uma dimensão humanista ao lado e além do cálculo que levou o presidente Barack Obama a determinar que não fosse divulgada (por quanto tempo, não se sabe) a imagem do cadáver de Osama bin Laden. Talvez esse mesmo cálculo ‒ que preside também a decisão de sepultá-lo no mar ‒ seja uma maneira de evitar o ‘quanto pior, melhor’.


Na vertente oposta ‒ acirrar os conflitos com imagens ‒ caso extremo é o do filme A Paixão de Cristo (2004), produzido e dirigido por Mel Gibson, um católico tradicionalista que acredita serem todos os papas, desde a década de 1950, ‘antipapas’. Convicção que lhe foi passada por seu pai e guia espiritual, Hutton Gibson, segundo o qual o Concílio Vaticano II consistiu em ‘uma conspiração maçônica apoiada pelos judeus’ e as Torres Gêmeas foram derrubadas por controle remoto, não por sequestradores da Al-Qaida.


A Paixão de Cristo, escreveu David Sterritt, crítico de cinema do Christian Science Monitor, é ‘uma incursão impiedosa na ultraviolência cinematográfica’. Para numerosos comentadores, o roteiro do suplício de Jesus filmado por Gibson afasta-se da verdade bíblica. Entretanto, o papa João Paulo II, depois de ver o filme, disse: ‘É assim que foi’.


A iconografia católica, por sinal, entre outras, não deixa dúvida quanto ao poder das imagens. Para o bem e para o mal.