Hoje [31/7] faz dois anos que o Estado de S.Paulo está sob censura judicial. Foram 730 edições que chegaram ao leitor proibidas, por um juiz do Distrito Federal, de veicular informações sobre atividades do empresário Fernando Sarney, filho do senador José Sarney, presidente do Senado. Informações, cabe lembrar, que constam em relatórios da Polícia Federal sobre a chamada Operação Boi Barrica, depois denominada Faktor.
Num País regido, há duas décadas, por uma Constituição que protege solidamente a liberdade de imprensa, a medida, que atinge também seu portal na internet, continha uma ironia – a de vir à luz três meses depois de o Supremo Tribunal Federal, em memorável decisão, ter sepultado a Lei de Imprensa do regime militar, um entulho jurídico de 1967 que sobrevivia como corpo estranho numa sociedade livre e democrática. Do acórdão que a extinguiu vale extrair a lição definitiva do ministro Carlos Ayres Brito: “Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário.”
Nas 10 páginas deste caderno especial o Estado relembra esses 730 dias de luta contra uma sentença que considera equivocada e que pesa sobre a liberdade de imprensa de todos os jornais do País. Também explica didaticamente o sentido de sua cruzada e a razão de levar o caso adiante mesmo depois da meia-desistência do autor da ação. Abre espaço para as avaliações de seu advogado nesse processo, Manuel Alceu Affonso Ferreira, e do ministro Carlos Ayres Brito, do Supremo Tribunal Federal – que se tem notabilizado por suas posições em defesa da liberdade de expressão.
O processo está, desde maio de 2010, nas mãos do ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça. Da parte do STF, o jornal aguarda também que julgue o mérito da ação e o próprio sentido da censura judicial. Que os dois informem, ao País, que não há na lei norma alguma que permita a um juiz impor censura, de qualquer tipo, a um órgão de imprensa.
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Entenda a batalha judicial do Estado
Por que o Estado foi censurado?
Foi uma ordem do desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Ele atendeu ao pedido do empresário Fernando Sarney, que queria impedir o jornal de publicar notícias sobre ele e sua família. As informações, dizia ele, eram de uma operação da Polícia Federal que corria em segredo de Justiça.
Que operação era essa?
A PF apurava, na Operação Boi Barrica (depois denominada Faktor), esquemas supostamente ilegais dos quais participava Fernando Sarney. Segundo a polícia, ele se valia do poder de seu pai, José Sarney, presidente do Senado, para influir em contratos e preenchimento de cargos em ministérios e estatais. Na mesma época, junho de 2009, o jornal denunciou a existência de mais de 300 atos secretos no Senado, que também criavam cargos de forma ilegal. As notícias acabaram se cruzando. No dia 22 de julho de 2009, o Estado publicou uma gravação da PF que trazia um diálogo entre o senador e seu filho. Os dois articulavam a nomeação de Henrique Dias Bernardes, namorado da filha de Fernando, para um cargo no Senado.
Em que lei se baseou o juiz para censurar o jornal?
No direito de Fernando à privacidade familiar. Esse direito está no art. 5.º (inciso X) da Constituição, que considera “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”.
O que está errado na decisão?
O Estado entende que a interpretação do juiz foi equivocada. A proteção da privacidade, em lei, limita-se à vida particular do cidadão. Não vale quando se trata de atos de interesse público. Naquele episódio estava sendo tramada uma ilegalidade – ignorar as regras do Senado para preenchimento de vagas.
Haveria outras razões além dessa?
Há uma outra, até mais importante. O juiz ignorou o inciso IV do art. 5.º e todo o art. 220 da Constituição. O inciso diz que “é livre a manifestação do pensamento e a informação”. O art. 220 determina que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veiculo não sofrerão qualquer restrição”. No seu parágrafo 2.º ele diz, com toda clareza, que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
A liberdade de imprensa deve prevalecer sobre o direito à privacidade?
Esse é o entendimento dos mais renomados juristas do País. A liberdade de imprensa e o direito de criticar autoridades e denunciar crimes e corrupção são tidos como valores maiores, pilares fundamentais das democracias. A norma consagrada é que a imprensa é livre para publicar e, depois, responde na Justiça por denúncias injustas. Mas será sempre uma cobrança a posteriori.
O que é censura judicial?
É a que resulta da decisão de um juiz com base numa interpretação das leis. Difere da censura direta e autoritária, imposta pelas ditaduras. No caso do Estado, o juiz determinou que ele pagará multa de R$ 150 mil a cada transgressão praticada.
A investigação da PF corria em segredo de Justiça. O que é isso?
É um recurso que o juiz adota para impedir que os dados de um processo sejam divulgados.
Por que o jornal ignorou esse segredo e divulgou a Operação Boi Barrica?
Por entender, também, que o segredo de Justiça não pode, de forma alguma, prevalecer sobre a liberdade de imprensa. Cabe ao juiz, ou ao advogado de um processo, manter uma informação em sigilo. Se ela vazou, o jornalista tem plena liberdade para publicá-la.
De que modo o jornal se defendeu no processo?
Primeiro, recorreu, no próprio TJ do Distrito Federal, contra a decisão de Dácio Vieira. Este derrubou o recurso. O jornal entrou também com mandado de segurança alegando a suspeição – visto que Dácio era amigo pessoal dos Sarney. Além disso, apresentou reclamação no Supremo Tribunal Federal, especificamente para derrubar a censura. Conseguiu que o juiz fosse trocado, mas a reclamação, no STF, foi negada. Por 6 votos a 3, o Supremo não aceitou o argumento do jornal para anular a decisão de Dácio Vieira, aprovada pelo TJ-DF. No entanto, na sentença o STF não julgou o mérito da ação – a constitucionalidade, em si, da censura baixada sobre o jornal.
O empresário desistiu do processo. Por que o jornal recusou e levou o caso adiante?
Havia duas razões. Primeiro, o empresário só pediu desistência daquele processo específico, mas não o fez da forma prevista em lei. Assim, estaria em condições de abrir novo processo, e conseguir nova ordem de censura. Cabe lembrar que ele continuou litigando contra o Estado.
Qual a segunda razão?
O Estado entendeu – e entende até hoje – que o que estava em jogo não era só o seu direito de publicar denúncias. Era a própria existência da censura judicial, uma anomalia que vem crescendo na vida brasileira. O que o jornal espera é que o Supremo julgue o mérito e derrube a censura. Isso criará uma jurisprudência para orientar tribunais de todo o País em casos semelhantes.
Qual é, no momento, a situação do processo?
No STJ, ele está nas mãos do relator Benedito Gonçalves desde maio de 2010. O ministro deve decidir se a competência para julgar o recurso do Estado é do TJ do DF ou do maranhense. O STJ poderia, ainda, desconhecer do pedido do empresário e encerrar o processo. Caso ele não analise a questão da censura, o Supremo pode julgar o mérito da decisão e, eventualmente, derrubar a censura.