Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Rosebud, o quebra-cabeça

Como seu protagonista, ele nos persegue pelos corredores da história. Inchado, grotesco, enorme; destruindo tudo por onde passa; influenciando e renovando. Cada década que se inicia o classifica como melhor filme de todos os tempos. Cada nova geração tenta responder: ‘Por quê?’. Cidadão Kane faz 70 anos. Sete décadas após sua estreia em Nova York, em maio de 1941, ele ainda está em toda parte. Não só por si, mas na forma de relançamentos, exibição em TV ou DVD, e na sombra monstruosa que lança sobre cineastas de todo o mundo.

Muito tempo depois de os críticos franceses que viraram diretores e criaram a Nouvelle Vague terem transformado Welles num semideus – lembra-se do jovem herói de Os Incompreendidos, de François Truffaut, que sonha em roubar fotogramas de uma exibição de Cidadão Kane? –, a figura do megalomaníaco atormentado, presidindo sobre os cacos de sua vida, é impossível de ser ignorada.

De Michael Corleone em O Poderoso Chefão a Daniel Day Lewis em Sangue Negro, via o Jake La Motta de Robert De Niro em Touro Indomável (o Cidadão Kane dos filmes sobre boxe), a vida dos personagens examinados sempre vale a pena para um público nutrido com temas como a ambição, a autodestruição e a guerra entre ações privadas e públicas. Não menos onipresentes desde Cidadão Kane são os dramas relatados com lembranças conflituosas, como Rashomon, O Ano Passado em Marienbad, Memento e Magnolia. Não menos ‘moderno’ em estilo, sobretudo desde que Robert Altman acrescentou novas cores à maestria de Cidadão Kane, é o movimentado retrato da vida enriquecido com uma trama e diálogos sobrepostos. Cidadão Kane chegou lá primeiro todas as vezes. Quando não conseguiu, seu brilho destruiu as lembranças dos antecessores.

Vencedor único

Welles não se preocupava com a forma de fazer filmes da ABC. Prodígio precoce, com 25 anos quando fez Cidadão Kane, passou direto para o XYZ. X representava a casa de Kane, o castelo de Xanadu, envolto em névoa, um sonho megalomaníaco construído sobre uma montanha artificial. Y queria dizer ‘Why?’ (por quê?) – mais uma vez, a pergunta mais simples e mais importante. Por que Kane era bem-sucedido, por que ele era um fracasso? Por que foi um triunfo e uma tragédia? Por que é, de uma maneira simultânea e quase simbiótica, todos nós e nenhum de nós?

E o Z? Ele quer dizer Zaharoff. Muitos admiradores de Cidadão Kane pensam que foi com ele que tudo começou. Em 1936, Welles, então produtor de rádio genial de Nova York, ajudou a elaborar o obituário ‘A Marcha do Tempo’, sobre o magnata comerciante de armas sir Basil Zaharoff. Vinhetas dramatizadas começam com secretárias de Zaharoff queimando seus documentos numa fogueira gigante em seu castelo. Depois, testemunhas são chamadas para relembrar a vida de Zaharoff. Mais adiante, o moribundo magnata, representado por Welles, ganha a palavra e uma aparição breve. Anuncia o desejo de ser conduzido em cadeira de rodas para ‘perto daquela roseira’. Sabemos em que a roseira (rosebush em inglês) se transformou. ‘Rosebud’ (botão de rosa), o som mais importante pronunciado em Cidadão Kane, a última palavra de Kane antes de sua morte, o segredo de seu infortúnio. É o nome de um trenó que ele teve na infância, que acaba sendo lançado nas chamas nas cenas finais do filme.

Jorge Luis Borges, que também foi crítico de cinema e adorava Cidadão Kane, achava a ideia de Rosebud seu ponto mais fraco. O filme, escreveu ele, ‘tem pelo menos dois enredos. O primeiro é de uma imbecilidade quase banal… Ao morrer, Kane tem saudade de uma única coisa: um trenó apropriadamente miserável com que ele brincava quando criança!’.

O próprio Welles se referia a Rosebud como ‘uma piada freudiana barata’. Foi o único detalhe do filme que ele atribuiu sem restrições ao roteirista Herman Mankiewicz, para quem se recusava a dar crédito em quase todas as outras partes.

O problema da autoria de Cidadão Kane – a autoria de sua genialidade, e não só da história – é o assunto do livro Criando Kane, de Pauline Kael, publicado pela primeira vez como um ensaio na The New Yorker em 1971. A alegação da autora foi que Mankiewicz, o irregularmente brilhante e beberrão irmão de Joseph (que fez A Malvada), foi roubado – em parte pelo ego de Welles – do direito de se chamar o criador de Cidadão Kane. (Em 1941, ele foi o único que recebeu o Oscar, embora os créditos pelo roteiro tenham sido divididos com Welles, após uma decisão da Writers Guild, a associação dos roteiristas dos EUA).

Em 1972, o crítico e diretor Peter Bogdanovich escreveu The Kane Mutiny (O Motim Kane), atacando Pauline Kael e defendendo Welles. Bogdanovich está certo. Não é o conceito, os diálogos ou mesmo a caracterização que faz do filme uma obra-prima. É sua visão.

Estupefação épica

O que isso quer dizer? Vamos voltar para Borges. Qual é a segunda das ‘duas tramas’? Ela é, para Borges, superior à trama de Rosebud. É ‘a investigação da alma secreta de um homem pelas obras que deixou, as palavras que pronunciou, os destinos que destruiu… O filme está cheio de formas de multiplicidade, de incongruência… Em uma das histórias de Chesterton’ – G.K. Chesterton, de quem Borges tanto gostava – ‘o herói observa que nada é tão assustador quanto um labirinto sem centro. Esse filme é esse labirinto.’

Você pode transformar um labirinto em um roteiro. Mankiewicz ajudou a fazer isso. Mas a caneta do roteirista não pode esculpir ou construí-lo, dar-lhe tamanho e reverberação. O labirinto em Cidadão Kane, o sepulcro da vida, o palácio da morte, é puro delírio cinematográfico, a criação do homem por trás da câmera. Sua infinitude refletida é produzida por um diretor que amava reflexos (o tiroteio na sala de espelhos do parque de diversões no clímax de A Dama de Xangai), suas atrocidades sombrias por um homem que amava sombras (A Marca da Maldade).

‘Wellesiana’ de forma sublime é o ‘assombreamento’ – às vezes é preciso inventar uma palavra se não há outra disponível – obsessivo do filme entre o teatral e o cinematográfico. Ninguém chegou tão perto de entender essa tensão quanto esse diretor. Cidadão Kane é sobre a busca da verdade jornalística pela representação teatral; e se perguntar, no processo, se mesmo a verdade jornalística é o último nível da realidade. Os cenários e a ambientação de Cidadão Kane são monstruosamente teatrais, e mesmo assim continuamos percorrendo-os, passando por trás e acima deles.

O sinal sobre o clube noturno de Susan Alexander é – numa tomada ‘impossível’ obtida pelo movimento do cenário – atravessado pela câmera. É um mundo cosmético e artificial, que nos desafia a encontrar verdades escondidas. A atuação de Welles fica mais teatral ao longo do filme. Para representar Charles Foster Kane quando velho, passava seis horas se maquiando: um adulto brincando com charadas. Mesmo assim, a força do filme, ajudada pelo poder de nossa curiosidade, destrói a sensação do faz-de-conta cosmético.

Rosebud é parte da mesma ação. O que parece uma simplificação de conto de fadas, uma ideia do departamento de adereços, abre-se e se transforma em parte da repercussão do filme. Welles foi mágico amador no fim da vida; seu último filme, Verdades e Mentiras, tratava de prestidigitação e embustes. Não admira que o segredo aparentemente fácil de Cidadão Kane – o nome de um trenó da infância – possa ser o segredo de fato. De uma forma mais literal, é o botão que se abre para a plateia, o botão que não se abre no filme. Na tela, ‘Rosebud’ nos diz que a vida de Kane foi corrompida em seu processo pelo encontro precoce com a riqueza e o destino. Mas, na nossa experiência com o filme, ‘Rosebud’ passa o oposto. A pronúncia da palavra cresce e cresce. Assim como muito do que acontece no cinema, ela começa com uma alusão e se expande no processo de mudança, associação, contraponto e contradição, transformando-se numa coisa que tudo engloba.

As partes representam o todo. Elas se tornam o todo. O padrão está em toda parte, da famosa cena do café da manhã – 16 anos de casamento elipsados na montagem de dois minutos –, à maneira como a ideia do ‘quebra-cabeça’ se torna reveladora, permeando tudo. Voltamos à estupefação épica de Susan Alexander Kane diante de um quebra-cabeça literal nas cenas finais e toda a técnica de quebra-cabeça empregada na rica montagem do filme: do cinejornal no início, mostrando o News on the March, às passagens agitadas envolvendo a carreira de magnata de Kane.

Gênio e criança

A realidade se contrapõe ao artificial. A cristalização se contrapõe à expansão. O condensado se contrapõe ao digressivo. E, é claro, os fatos se contrapõem à ficção. Será ‘Cidadão Kane’ retrato do multimilionário da imprensa William Randolph Hearst? É claro. Hearst o reconheceu, proibindo menção ao filme em suas publicações. Louis B. Mayer, em nome de uma Hollywood que temia a represália terrível de Hearst, ofereceu aos estúdios RKO US$ 805 mil para queimar todas as cópias e o negativo do filme.

Mas Cidadão Kane não tem nada a ver com Hearst e, como ícone mundial, sobreviveu a ele. Pode-se dizer, com razão, que Kane é o personagem Kurtz de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad – que inspiraria Francis Ford Coppola em seu Apocalipse Now. O filme O Coração das Trevas era o projeto de estreia de Welles, cuja pré-produção ele havia iniciado. Caro demais, ele o trocou por Cidadão Kane. Mas as histórias são idênticas. Um ‘explorador’ (em Cidadão Kane, um repórter investigativo) viaja ‘rio acima’ (contra as ondas da resistência) através de uma ‘selva’ (de informações conflitantes e contraditórias) para encontrar um homem – ou, em Cidadão Kane, o segredo de um homem – que vive como tirano determinado.

Mas, de todo modo, Kane é o próprio Welles. Os amantes e os críticos de Cidadão Kane reconhecem o jovem volúvel e atormentado que aparece diante das câmeras como o que está atrás delas. O gênio maduro que era ao mesmo tempo uma enorme criança. O tirano rabugento que era uma alma perdida, cativante e fértil. O botão de rosa que também era rosa…

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Do Financial Times