A abolição da pena de morte foi obra dele. A reconciliação com a Alemanha (quem não lembra da emblemática foto de mãos dadas com Helmut Kohl?), também. A quinta semana de férias para os trabalhadores, o imposto sobre as grandes fortunas, as nacionalizações, a pirâmide do Louvre, o arco de La Défense, a Bibliothèque National de France, as 39 horas de trabalho semanais, a aposentadoria aos 60 anos, o salário mínimo social a todos os necessitados, Revenu minimum d’insertion, consagrado pela sigla RMI.
A herança de Mitterrand é colossal e ajudou a forjar o mito do ‘único presidente de esquerda da Quinta República’, ‘beatificado’ pelos socialistas durante as comemorações dos 30 anos de sua eleição, neste 10 de maio de 2011, alguns dias depois da beatificação de João Paulo II. Pelo estilo de governar, pelo gosto do poder e pela autoridade natural que lhe era imputada, o socialista foi chamado por uma certa imprensa francesa de direita de ‘Mitterramsés’ (a pirâmide do Louvre ajudou a aproximação com os faraós).
Mas a eleição de Mitterrand na Union de la Gauche, forjada com os comunistas, também ocasionou uma fuga de capitais fenomenal, que ameaçou o franco francês e o novo governo então recém-instalado no Palácio do Eliseu. No Libération, o trabalhista britânico Denis MacShane conta que no dia seguinte, 11 de maio de 1981, tomou o avião de volta a Londres cercado de homens de negócios parisienses que seguravam nervosamente as pastas 007, apavorados com a chegada da esquerda ao poder. ‘No avião, havia pelos menos 10 bilhões de francos que deixavam a França’, diverte-se trinta anos depois MacShane.
Prognóstico furado
Os 30 anos da chegada ao poder do presidente socialista, um chefe de Estado de estatura inegável, homem de cultura extraordinária, foram comemorados na mídia com suplementos especiais nos jornais de esquerda, como Libération e Le Monde, e documentários exibidos na televisão. Os que não viveram a era Mitterrand não têm do que se queixar. A eleição do presidente que trouxe a esquerda ao poder e nomeou ministros comunistas (o que inquietou enormemente Ronald Reagan e seu vice-presidente George Bush, assim como Margaret Thatcher) foi rememorada com uma avalanche de festas e encontros, mas sobretudo de textos e análises na imprensa escrita.
Le Monde constatava na manchete do número datado de 10 de maio que ‘Mitterrand volta a ser o ícone da esquerda’ 30 anos depois de sua eleição. E, como homenagem, presenteou os leitores com um suplemento de 16 páginas, réplica exata das páginas que analisaram e noticiaram a eleição de 10 de maio de 1981. Um deleite para colecionadores. Naqueles tempos, o jornal não publicava fotos e na primeira página a única imagem é de Pierre Mendès-France, na publicidade da biografia escrita por Jean Lacouture. Uma frase de Mendès-France remete sutilmente ao fato do dia: ‘Toda política não é suja. Toda ação não é vã.’
Na noite de comemorações, depois do telejornal da noite, o canal France 2 fez uma homenagem que começou às 20h35 e entrou pela madrugada. Changer la vie-Mitterrand 1981-1983, de Serge Moati, cineasta que foi assessor do presidente para assuntos de audiovisual e depois dirigiu o canal público France 3, abriu a série de três filmes em torno do presidente.
Em Changer la vie, que pertence ao gênero que os franceses chamam de docufiction, pois mistura imagens de arquivo com cenas reais vividas por atores, Moati reconstitui sua relação com o presidente e os principais fatos de seu governo, inclusive o câncer, diagnosticado pouco depois da eleição de 1981 e do qual os franceses só tomaram conhecimento dois anos antes de ele deixar o poder, em 1995. No excelente docufiction, o médico que diagnosticou o câncer de Mitterrand lhe anuncia a doença e responde ao presidente com um prognóstico de seis meses e um ano de vida. Era 1981. Ele sobreviveu quase 15 anos, até 8 de janeiro de 1996.
Os ‘segredos de família’
O segundo filme, François Mitterrand à bout portant – 1993-1996, é um excelente documentário que reconstitui os quatro últimos anos da vida do presidente, o suicídio do ex-primeiro-ministro Pierre Bérégovoy e a obsessão do presidente em resistir à doença para terminar seu segundo mandato.
O terceiro programa da noite dos 30 anos da vitória socialista, François Mitterrand-Secrets de famille, foi o único que tratou da vida pessoal de Mitterrand. O programa dedicou uma longa reportagem à vida dupla que o presidente levou por mais de vinte anos dividindo seu tempo entre a mulher Danielle e a amante Anne Pingeot. Da relação com Anne, o presidente teve uma filha, Mazarine, revelada por Paris Match pouco antes de sua morte.
As cenas do enterro com as duas famílias reunidas foram vistas no mundo inteiro e impressionam pela dignidade das duas mulheres que partilharam a vida do grande político. Os filhos contaram como a família viveu a duplicidade do presidente, reconstituíram as dificuldades da organização da visita de Danielle após a morte do marido, que passou os últimos meses de vida pós-Eliseu com Anne e sua filha, num apartamento funcional do governo francês.
Depois de revelados por Paris Match, os ‘segredos de família’ foram tema de livros e reportagens, mas nunca tinham sido contados em imagens pelos próprios filhos do presidente. Mazarine e seus irmãos, Jean-Christophe e Gilbert, relatam como viveram ao lado desse pai que fez tudo para manter em segredo a existência da outra família. Discretas, Danielle e Anne Pingeot só aparecem em fotos e imagens de arquivo.
Impopularidade de Sarkozy
Ao contrário do que se passaria numa sociedade puritana, como a americana, a vida dupla de Mitterrand não arranhou em nada sua imagem para a posteridade. No país de Voltaire, os jornalistas sempre respeitaram a vida privada dos políticos e os jornais não tratam das histórias de alcova de seus dirigentes, mesmo se le tout Paris conhecesse as histórias galantes de Giscard d’Estaing, de Mitterrand e de Chirac.
Mas isso foram outros tempos. Sarkozy chegou ao poder, começou a expor sua vida privada em conversas e em passeios ostensivamente públicos, iniciando a queda vertiginosa nas pesquisas. Mas este exibicionismo chocante foi apenas um dos motivos do atual fenômeno de impopularidade presidencial nunca vista.
******
Jornalista