Antônio Gonçalves Dias, o poeta romântico da Canção do Exílio e de I-Juca-Pirama, era redator do Correio Mercantil. Escrevia sobre questões urbanas e teatro. Para aumentar a circulação do jornal, lançou um concurso entre os leitores, possivelmente o primeiro da imprensa brasileira. Colocou quatro perguntas extremamente genéricas. Duas delas: ‘Qual a melhor coisa deste mundo?’ ‘Qual a pior coisa deste mundo?’ Quem acertasse as respostas, previamente preparadas, ganhava um prêmio.
Respostas: a melhor, ‘a mulher-anjo’, que Gonçalves Dias disse ter perseguido toda sua vida, sem nunca tê-la desfrutado; e a pior, ‘a mulher-demônio’, sobre a qual escreveu Joaquim Manuel de Macedo, autor de A Moreninha, seu companheiro de redação. Como o concurso tivesse grande repercussão, Gonçalves Dias colocou um novo desafio aos leitores. Perguntou: ‘Se fosses Deus, o que mudarias no mundo?’ ‘Se fosses Rei, que bem farias ao teu povo?’ ‘Se fosses Legislador, que reformas proporias?’ Quem conta essa curiosa história é Fernando Segismundo, no Boletim da ABI. Não se sabe se a circulação do jornal realmente aumentou, mas os concursos despertaram a curiosidade do público e foram comentados pela imprensa da época.
O Correio Mercantil, um jornal liberal, rivalizava em importância, em meados do século XIX, com a principal publicação da época, o conservador Jornal do Commercio, segundo este reconheceu. Na opinião de alguns autores, o Correio era o mais importante órgão da corte. Mas, apesar de sua penetração e influência, esse diário teve uma vida curta e atribulada, talvez uma indicação das dificuldades de sobrevivência de uma folha liberal durante o Império.
Durou apenas 20 anos. Surgiu em 1º de janeiro de 1848, resultado da metamorfose de vários jornais anteriores. O primeiro foi o Pharol Constitucional, lançado em 1842, que mudou o nome para Pharol no ano seguinte, transformou-se em O Mercantil em 1844 e, finalmente, no Correio Mercantil. Ao contrário do rival, o Jornal do Commercio, que apoiava o governo, mas não tinha ligações nem seguia a linha de nenhum partido, ficando neutro nas contendas políticas, o Correio Mercantil era uma folha engajada, defensora do Partido Liberal. E dele recebia ajuda quando estava no poder.
Pena de ouro
O jornal aumentou sua influência quando era controlado por Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto, o ‘Velho Barreto’, empresário que tinha ganhado dinheiro quando conseguiu a concessão da ferrovia entre Salvador e o rio São Francisco e a revendeu a capitais ingleses. Na juventude, tinha sido um revolucionário ardente e entusiasta, que fundiu vida, fortuna, dedicações, amizades, sua alma toda, no Mercantil, segundo Barbosa Lima Sobrinho. O Jornal do Commercio tinha a mesma opinião dele. Disse que o Correio Mercantil nunca foi, para seu proprietário, ‘uma empresa comercial onde auferisse lucros pecuniários, mais ou menos avultados; ao contrário, dele sempre se utilizou como um meio de apresentação de propaganda de suas ideias liberais. Não admira, pois, que as dificuldades financeiras, acumuladas desde anos, se tornassem por fim impagáveis, impondo a passagem da empresa a outras mãos’.
Um jornalista da época escreveu que o Correio Mercantil merecia a estima dos homens livres, porque publicava ideias liberais e combatia o despotismo sem receio. Para o professor de jornalismo Nelson Lage Mascarenhas, o Correio Mercantil e o Diário do Rio de Janeiro eram jornais de ‘grande tiragem, parte informativa esmerada, seção financeira, comercial, correspondências do estrangeiro e a substancial seção de anúncios’.
O Correio tinha quatro páginas, como os outros jornais. A assinatura trimestral custava 4 mil réis e a anual, 20 mil. No começo dos anos 1850, era também publicado em francês, aos domingos. Um dos seus principais atrativos eram os folhetins em série. Em suas páginas, Joaquim Manuel de Macedo publicou em 1848 o romance em capítulos Dois Amores e Teixeira e Sousa publicou A Providência. Em 1852 e 1853, Manuel Antonio de Almeida escreveu as Memórias de um Sargento de Milícias, sob o pseudônimo de ‘Um Brasileiro’, o primeiro romance de costumes retratando as classes mais humildes publicado no Brasil, num estilo simples e vigoroso, que contrastava com o texto rebuscado da época. Esse romance foi publicado na seção semanal ‘A Pacotilha’, escrita em grande parte por Manuel Antonio de Almeida, que atraiu a atenção pela mistura de temas políticos e literários tratados com humor. Durou pouco tempo e foi substituída por outra, ‘Páginas Menores’. Por razões que não ficaram claras, Almeida rompeu com o jornal. Como disse numa carta, decidiu ‘não oferecer nem aceitar trabalho do Mercantil estipendiado’. Ele enfrentou dificuldades, pois os seus planos de escrever para o Diário do Rio de Janeiro não deram certo.
Machado de Assis foi revisor do jornal. João Francisco Lisboa teve aos seus cuidados a crônica jurídica, que também seria escrita por José de Alencar. Quando os liberais estavam no poder, o Correio Mercantil, ‘folha ministerial’, publicava desde 1848, ano de sua fundação, os atos oficiais, que lhe proporcionavam uma boa renda. Com o retorno dos conservadores, perdeu esse privilégio em 1851.
Na fase áurea, o Correio foi dirigido por Francisco Octaviano de Almeida Rosa, genro de Muniz Barreto, a quem Cláudio Mello e Souza, em Impressões do Brasil, considera, talvez com excessivo entusiasmo, um dos mais lúcidos diretores de jornal de todos os tempos. Para Joaquim Nabuco, ele era detentor da ‘pena de ouro da imprensa’. Francisco Octaviano tinha escrito no Jornal do Commercio o folhetim ‘A Semana’, curioso e vivo retrato da sociedade fluminense, de enorme repercussão. Quando o sogro o levou para a direção do Correio, em 1854, ele indicou José da Alencar para substituí-lo. A recomendação não foi aceita, por ser Alencar muito jovem, decisão de que o Jornal iria se arrepender.
Contribuição decisiva
Francisco Octaviano calibrou a informação política no período de conciliação dos partidos, convidando para escrever, além de colaboradores liberais, algumas figuras conservadoras, como José Maria da Silva Paranhos e Carlos Emílio Adet, que passariam depois para o Jornal do Commercio, e Nabuco de Araújo. Deu também atenção à literatura e em 1854 contratou José de Alencar, dada a recusa do Jornal do Commercio em aceitá-lo. Ambos eram amigos e tinham estudado juntos Direito em São Paulo. Alencar escrevia a crônica judicial e fazia a cobertura dos tribunais, ‘com muita segurança e método’, além da seção semanal ‘Ao Correr da Pena’, e cuidou também da seção de rodapé ‘Páginas Menores’. Foi observado o contraste entre a narrativa mais pesada dos romances O Guarani e Iracema, posteriores, e o ‘tom de humor e graça leve’ dos folhetins no Correio.
Francisco Octaviano deixaria a direção do jornal para dedicar-se à política. Mais tarde, foi deputado e conselheiro de Estado. Representou o imperador d. Pedro II na assinatura do tratado da Tríplice Aliança, em Buenos Aires, em 1º de maio de 1865, que uniu Brasil, Argentina e Uruguai na guerra contra o Paraguai. Ele substituiu Rio Branco no relacionamento com esses países.
Disse Raimundo Magalhães Júnior que o Correio Mercantil foi, num momento, o estuário em que se encontraram três dos maiores jornalistas da época: Francisco Octaviano, José de Alencar e Torres Homem. Este último assinava ‘F.T.H.’ e já não era o inflamado panfletário radical que, na juventude, escrevera, com o pseudônimo de ‘Timandro’, o ‘Libelo do Povo’. Com a idade, estava tornando-se crescentemente conservador.
José de Alencar deixou o jornal em 1855, por sentir-se censurado. Ele escrevia crônicas contra a especulação na bolsa, pedindo que o mercado de ações fosse controlado com base no Código Comercial, com o fechamento das companhias que davam prejuízo aos acionistas. Quando percebeu vários cortes num dos textos, a pedido de seu amigo Francisco Octaviano, ele mandou a carta de demissão, transcrita parcialmente:
‘Sempre entendi que a Revista Semanal de uma folha é independente e não tem solidariedade com o pensamento geral da redação; principalmente quando o escritor costuma tomar a responsabilidade de seus artigos, assinando-os. A redação do Correio Mercantil é de opinião contrária, e por isso, não sendo conveniente que eu continuasse a ‘hostilizar os seus amigos’, resolvi acabar com o ‘Correr da Pena’ para não comprometê-la gravemente. Antes de concluir, peço-lhe que tenha a bondade de fazer cessar o título com que escrevi as minhas revistas. Não tem merecimento algum, há muitos outros melhores: mas é meu filho, e por isso reclamo-o para mim, mesmo porque talvez me resolva mais tarde a continuá-lo em qualquer outro jornal que me queira dar um pequeno canto’.
Uma coletânea de ‘Ao Correr da Pena’ foi publicada em forma de livro. Aparentemente, o Correio Mercantil ignorou seu antigo colaborador. Quando custeou de seu próprio bolso a edição de um novo romance, Alencar lamentou que a repercussão em ‘toda a imprensa diária resumiu-se nesta notícia de um laconismo esmagador, publicada pelo Correio Mercantil: ‘Saiu à luz um livro intitulado Lucíola’’. Mas os outros jornais nem isso publicaram. Alencar trabalhou um tempo como advogado, antes de ir para o Diário do Rio de Janeiro, onde seria gerente e em cujas páginas escreveu vários romances-folhetim.
A campanha que nas eleições de 1860 o Correio, com Francisco Octaviano, e o Diário do Rio, com Saldanha Marinho, fizeram contra os conservadores contribuiu de maneira decisiva para a derrota destes. Esses dois jornalistas, mais Teophilo Ottoni, foram eleitos deputados pelo Partido Liberal. O Correio teve ainda jornalistas como Tavares Bastos, que escreveu as ‘Cartas de um Solitário’ em 1862, com grande repercussão. Três anos mais tarde, ele substituiu Francisco Octaviano na chefia da redação quando este viajou ao Rio da Prata.
Personalidade perdida
Já com as finanças abaladas, nos anos seguintes o Correio entrou em declínio, adotando uma linha ambígua que desorientou os leitores. Começou a trocar de pele até que, de tradicional defensor dos liberais, tornou-se porta-voz do Partido Conservador, então na oposição. A redação era dirigida por Firmino Rodrigues Silva, um dos mais combativos jornalistas conservadores do Império, e teve como principais colaboradores, igualmente conservadores, Antonio Ferreira Vianna e Joaquim José de França Júnior, que, sob o pseudônimo de ‘Osíris’, retornou ao jornal em que começara sua carreira de folhetinista. José de Alencar voltou a escrever no jornal na nova fase. Para tentar restaurar as finanças, o Partido Conservador mandou uma carta-circular a seus seguidores das províncias para que assinassem o jornal.
Rodrigues Silva polemizou com o Partido Liberal, no governo, que se valeu da seção ‘A Pedidos’ do Jornal do Commercio para responder. Essa metamorfose não conseguiu salvar um Correio Mercantil que tinha perdido a personalidade e trocado de ideologia. Em dezembro de 1868 foi absorvido melancolicamente por seu concorrente, o Diário do Rio de Janeiro.
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Jornalista, autor de Os Melhores Jornais do Mundo