Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Não há como um Estado coibir uma corporação como a News Corp.

A profunda corrupção de poder revelada pelo escândalo das escutas clandestinas levou muita gente a se perguntar como a News Corp., de Rupert Murdoch, conseguiu criar um Estado dentro de um Estado. Parlamentares proclamaram sua determinação de garantir que nunca isso aconteça de novo. Terão uma batalha pela frente. Como para reiterar a questão, a diretoria da BskyB anunciou na quinta-feira (28/7) que voltara a funcionar normalmente. Apesar das interrogações do Parlamento sobre a integridade de seu presidente, James Murdoch, os outros diretores disseram que lhe dão apoio total. Poucas horas mais tarde, o Guardian revelou numa nova baixa na saga – supostas descobertas que o telefone da mãe de Sarah Payne teria sido grampeado. Mas o grupo News Corp. segue em frente.

O fato é que as modernas corporações globalizadas não são um Estado dentro de um Estado, e sim, um poder acima e além do Estado. Especialistas em desenvolvimento internacional pararam, há anos, de falar em multinacionais, preferindo, ao invés disso, referir-se a elas como corporações transnacionais (TNC´s), pois atualmente essas empresas transcendem as autoridades nacionais.

Os países em desenvolvimento, que negociam com corporações cuja arrecadação é muitas vezes superior a seus próprios PNBs, estão conscientes, há muito tempo, de sua falta de poder. Conhecem a forma pela qual foram escritas as regras do comércio mundial – para beneficiar as corporações e limitar as formas pelas quais um país se pode impor a elas. Conhecem a tendência das transnacionais ao oligopólio; assim como sua capacidade de penetrar no coração dos governos por meio de lobbies. Para um país rico, como a Grã-Bretanha, essa revelação foi mais como um choque.

Bancos transnacionais têm sido mais do que mestres

Se as multinacionais se identificavam com uma nação materna, as transnacionais (TNC´s) não têm tal lealdade. As fronteiras territoriais não importam mais. Esse foi o impulso dado pelos tratados da Organização Mundial do Comércio (OMC) nas últimas décadas. Atualmente, as transnacionais podem se aproveitar da livre circulação de capital e da facilidade de transferir a produção de um país para outro, para escolher os marcos regulatórios que lhes sejam mais adequados. Caso sofram restrições por parte de autoridades legislativas legítimas, podem apelar à OMC para garantir seus direitos, ameaça recentemente feita pela empresa de fumo Philip Morris, que diz que irá processar o governo australiano num montante de bilhões de dólares por violar seus direitos de propriedade intelectual caso siga em frente com seu projeto de proibir a estampa da marca nos maços de cigarros.

As TNC´s podem – e é isso que fazem – arrecadar seus lucros no exterior, para impedir os esforços de qualquer país que queira taxar sua rentabilidade. A capacidade de elevar impostos para fornecer serviços é uma função essencial de governos democráticos, mas mas os governos foram reduzidos à condição de pedintes, cortando cada vez mais os índices dos impostos para agradar às corporações. Paralelamente a isso, como demonstrou o visionário Geoff Tansey, da Fundação Rowntree [fundação britânica de pesquisa sobre políticas sociais], as transnacionais utilizam-se de patentes e direitos de propriedade intelectual para criar seus próprios sistemas de impostos privados.

Caso as leis trabalhistas ou as normas de regulamentação ambiental saiam caras para elas, podem transferir suas operações para jurisdições menos rigorosas. Assim, as empresas que produzem alimentos ou roupas, podem mudar-se para centros de produção mais baratos quando os governos criam salário mínimo, ou quando os sindicatos conquistam os direitos dos trabalhadores. Se as normas financeiras restringem sua capacidade de inventar novos produtos, complexos e perigosos, para vender, podem montar suas fábricas em outro lugar. Os bancos transnacionais têm sido mais do que mestres ao jogarem uma jurisdição contra outra e usando a ameaça de se transferirem para resistir ao controle dos governos. Grande parte de suas atividades ainda ocorre num sistema nebuloso, para além dos Estados que abandonaram seus projetos.

Derrubados por ativistas do Twitter

Cerca de três anos após o quase-colapso do sistema como um tido, a reforma estrutural que todo mundo concordava ser necessária não se materializou. Lobbiescriados dentro de governos europeus e dos Estados Unidos vêm pedindo a separação entre depósitos feitos em bancos de investimento e bancos varejistas, que recebem depósitos de pessoas comuns. Portanto, os bancos continuam demasiado grandes d demasiado interconectados para saírem perdendo. Vince Cable, o secretário de negócios que, ainda esta semana, defendeu com veemência essa separação, espera, impotente, que o isolamento de funções preferido pelas grandes corporações dê certo. A chanceler alemã Angela Merkel – numa tentativa de garantir que as grandes corporações bancárias privadas participassem dos empréstimos feitos pelo governo à Grécia, à beira do colapso financeiro – foi ameaçada não apenas com a transferência, mas com a quebra de todo o sistema bancário. Nada de surpreendente se ela recuou.

Atualmente, os questionamentos mais eficazes feitos às transnacionais não partem apenas de ONGs ou de consumidores, mas também de governos individuais. Por meio de campanhas, foram encontradas novas formas de engajamento assimétrico que lhes permitem desafiar as corporações cujos recursos diminuem os seus. Explorando os mesmos avanços em tecnologia e comunicação globalizada instantânea utilizados pelas TNC´s para exercer seu controle, os ativistas reuniram grupos de interesses comuns além-fronteiras para desafiá-las. Grupos de ação direta, como o Greenpeace, por exemplo, conseguiram conectar manifestantes que protestavam contra as transnacionais que comercializam soja na Amazônia com ativistas de países europeus em campanhas simultâneas e extremamente eficientes contra as marcas compradoras.

Quando, de início, os Murdochs se recusaram a comparecer perante o Parlamento para explicar seu comportamento de corporação, ocorreram muitas consultas ansiosas às antigas normas para ver se esses dois cidadãos estrangeiros poderiam ou não ser forçados a fazê-lo. Por fim, talvez tenha sido o mercado que os levou a aceitar, na medida em que os gurus dos limites de prejuízo aconselharam que uma dose de humildade seria a estratégia mais eficaz para recuperar a confiança dos acionistas. Após a revelação da escuta clandestina de Milly Dowler, nem foram nossos representantes eleitos, nem nossa polícia, encarregada de fazer valer a lei, mas ativistas do Twitter que os derrubaram. Ao atacarem não apenas as marcas de propriedade dos Murdochs, mas aquelas pertencentes aos anunciantes, até que se retirassem das páginas do News of the World, eles jogaram o jogo do mercado globalizado.

***

[Felicity Lawrence é jornalista do Guardian]