Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por novos discursos midiáticos

De ano e meio para cá, concluí um estudo comparado acerca de alguns contornos laborais e culturais entre populações marítimas de Brasil e Portugal, pesquisa que encerrei em maio no meu doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Alguns pensamentos remeteram à condição sociopolítica da Europa e suas implicações internacionais nesses últimos anos e os considero bastante atuais se relacionados a acontecimentos recentes, alguns ora em curso.

Antes de prosseguir, advirto que não quero escamotear as tantas mazelas que Brasil e vizinhos da América Latina têm a superar: acertos com suas ditaduras, caos urbano generalizado, pobreza, miséria monumental, racismo secular, destrato com a coisa (res) pública. Mesmo não aprofundando essas questões, arrisco dizer que a prática democrática talvez seja a principal diferença entre a AL e a União Europeia hoje, onde eleitores não comparecem às urnas, ao contrário de cá. Pode-se até argumentar que no Brasil, o voto é “obrigatório”, mas pagando uma “multa” de menos de três reais livra-se de qualquer punição ou restrição legal. Ainda assim, a abstenção, das mais altas da história na eleição passada (cerca de 20%), não se iguala à do ao voto “livre” europeu, onde, em média, a metade dos eleitores não comparece para legitimar os governantes.

Talvez outra diferença notável entre AL e UE seja a ascensão da esquerda e centro-esquerda (Uruguai, Paraguai, Argentina, Brasil, Equador, Peru, Venezuela, Nicarágua, El Salvador) e a abertura de diálogo dos governos com intelectuais e o meio acadêmico, um tanto desconsiderado, no lado europeu, pela pasteurização da formação profissional em detrimento da atividade intelectual promovida pelo Tratado de Bolonha, que encareceu o ensino público.

Crescente centralização do poder dos políticos

Em comum, a grande mídia, de lá e de cá, permanece conivente com o establishment, relegando contestações populares em seu próprio território a uma cobertura secundária (no dia em que escrevo, os jornalões espanhóis escondem a agressão policial a manifestantes em frente ao Congresso em Madri, pela manhã, o que à tarde virou manifestação gigantesca na Gran Vía e não pode ser oculta). O mesmo tratamento não é dispensado às manifestações (legítimas) do Oriente Médio, por exemplo.

A questão europeia parece ser que boa parte dos europeus prossegue definindo o “outro”, o de fora, o “inferior”, o “subalterno”, ao passo que esquece do monstro que gera em seu próprio ventre: a intolerância, seja pelas enormes diferenças de classe, ou de religião e de culturas que convivem no continente.

Para dispor de mão de obra barata e garantir o acesso do grande capital industrial a mercados de países integrantes, blocos como a UE tornam-se profundamente anti-democráticos ao, por exemplo, não consultar a maioria de sua população em questões como o recente Tratado de Lisboa (2008-2009), no qual o único país que ousou levar o tratado a referendo popular foi a Irlanda e a negativa da população evidenciou o espectro de “desunião europeia” e a centralização cada vez maior do poder de decisão no Estado. Há, na UE, uma crescente centralização do poder de decisão nas mãos dos políticos, o que explica, em parte, a atual eclosão de manifestações públicas e a busca de outras formas de representação na Grécia, Islândia, Espanha, Portugal, Itália e Inglaterra, entre outros.

Os ideais fascistas

Nos poucos países onde a esquerda está no governo, perdem-se conquistas sociais, com restrições ao acesso à saúde e educação públicas, para atender às demandas economicistas da UE e particularmente da Zona Euro, controlada, majoritariamente, por políticos de direita e centro-direita. A Europa, hoje, merece atenção e vigilância, pois grassa um crescente nacionalismo e xenofobia nas fronteiras nacionais e não só em manifestações isoladas, como a tragédia da Noruega.

Mais que isso, paralelamente às ações espontâneas ou coletivas de fascismo e racismo, as instituições de governos empreendem o que Boaventura Santos denomina de “fascismo social”, um tipo de regime no qual predomina a lógica dos mercados financeiros em detrimento de grandes setores das populações, gradativamente distanciados e excluídos do campo de direitos sociais adquiridos nas últimas décadas. O risco, alerta Santos, é o da ingovernabilidade. Pois os ideais fascistas, longe de terem sido erradicados, dão sinais evidentes disso muito antes do bárbaro crime na Noruega, entre os quais cabe destacar:

** A restrição à liberdade religiosa (nomeadamente, da prática do Islã), tendência crescente entre políticos e eleitores de direita na Suíça, Bélgica, Holanda e França;

** A perseguição em praça pública a imigrantes africanos em zonas de Itália, resultando em execuções na rua, à luz do dia (Nápoles, 2009), atribuídas à máfia e com a impotência cúmplice das autoridades;

** A ascensão da centro-direita, aliada a partidos de extrema-direita, alguns assumidamente nacional-socialistas (nazistas) e fascistas, como foram as eleições regionais italianas, em 2010, e a eleição recente para o parlamento da Hungria, onde o partido Jobbik, com propostas abertamente nacionalistas e antissemitas, se constituiu na terceira força política, com 17% dos votos, e participa do governo de coalizão;

** Partidos ditos “socialistas” adotando políticas sociais espoliantes aos pobres e à classe média, configurando um novo tipo de esquerda, uma espécie de esquerda ambidestra.

Ideologia de longa duração

Entretanto, é a mesma Europa na qual surgiu a luta de classes e onde a ampliação dos direitos civis se deu primeiro e mais rapidamente que em qualquer outro continente (legalização do aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, descriminalização de drogas leves etc.) e que tantas e tantas vezes demonstrou ao mundo que, se há retrocessos e tendências fascistas, há sempre alternativas.

Estas são muitas vezes imprevisíveis, e relembro o 15-M e seus congêneres. Para elas, devemos estar igualmente atentos, no sentido de fortalecê-las. Pois, segundo afirmou Félix Guattari em As Três Ecologias (Campinas, 1991, Papirus Editora, pg. 47), há que se considerar o potencial das “bruscas tomadas de consciência das massas, que continuam sempre possíveis; a recomposição dos processos de trabalho sobre os escombros dos sistemas de produção industriais do início do século, o que reclama uma crescente produção de subjetividade `criacionista´, tanto no plano individual quanto no plano coletivo”.

Em junho de 2010, Boaventura Santos, no artigo “Cidadãos Europeus, Uni-vos!”, publicado em 01 de junho de 2010 no site Carta Maior,afirmou que:

“A luta de classes está voltando sob uma nova forma, mas com a violência de há cem anos: desta vez, é o capital financeiro quem declara guerra ao trabalho. O que fazer? (…) A resistência, ou é europeia ou não existe. (…) As lutas nacionais serão um alvo fácil dos que clamam pela governabilidade ao mesmo tempo que desgovernam. Os movimentos e as organizações de toda a Europa têm de se articular para mostrar aos governos que a estabilidade dos mercados não pode ser construída sobre as ruínas da estabilidade das vidas dos cidadãos e suas famílias. Não é o socialismo; é a demonstração de que ou a UE cria as condições para o capital produtivo se desvincular relativamente do capital financeiro, ou o futuro é o fascismo e terá que ser combatido por todos os meios.”

As populações locais europeias parecem estar a somar e agregar seus muitos focos de resistência à política e à mídia, que lhes impõe o que chamo de “dispositivo pós-colonial”, ou DPC. Trata-se de discursos e estratégias que seus governos exercem sobre elas próprias, impondo normas que visam tanto a justificar ocupações e dominação de territórios estrangeiros (como o que se dá atualmente no Afeganistão e na Líbia), quanto à imposição de determinações internas. Tais normas do tipo DPC são geradas por governantes que necessitam coagir as populações nacionais e são sustentadas e difundidas pela mídia, no que Murdoch e seus pares se notabilizaram ao extremo nestes últimos 20 anos. O DPC é uma ideologia de longa duração que, longe de ter sido erradicada, é latente, e contra ela devemos buscar alternativas.

A prerrogativa do discurso midiático

Portanto, é preciso considerar novas configurações possíveis para mídia percebendo onde, como e quando se dá a eclosão do DPC, mesmo porque estamos numa época em que a informática possibilita o surgimento de outras vias de expressão para além da comunicação social convencional. Em países como o Brasil, de alta concentração da propriedade da mídia no meio privado, entre grupos capitalistas e familiares, esta segue sendo a “quinta-coluna”contraa democracia, como se viu, mais uma vez, às vésperas das eleições presidenciais de 2010, quando Judith Brito, então presidente da Associação Nacional dos Jornais, declarou à vontade: “Na situação atual, em que os partidos de oposição estão muito fracos, cabe a nós, dos jornais, exercer o papel dos partidos. Por isso estamos fazendo.”

Intelectuais e ativistas têm, nesse quesito, papel decisivo e potencial (como se dá nos “alternativos” Observatório da Imprensa, Sin Permiso e Carta Maior). Mas é preciso, sobretudo, entender e evidenciar que populações locais, externando e ampliando suas insatisfação, têm condições de fazer frente ao DPC e é preciso compreender, incentivar e fortalecer as formas das manifestações dessas populações. Hoje, é comum o acesso à internet pelos jovens e adultos das populações mais interioranas de muitos países, um instrumento importante de contraposição ao discurso hegemônico da mídia.

Romper a prerrogativa do discurso midiático. Esta parece ser a problemática global comum a todas as populações hoje.

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[Túlio Muniz é jornalista, historiador e doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra]