Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O historiador do presente

O britânico Timothy Garton Ash talvez seja hoje o principal historiador do “tempo presente”, isto é, dos acontecimentos que explodem diante de nossos olhos contemporâneos e dos quais temos imensa dificuldade de captar a essência. É isso o que Garton Ash tenta fazer, o que requer, antes de mais nada, enorme dose de ousadia; afinal, a falta de distanciamento temporal é receita certa para erros de avaliação. Mas Garton Ash é um historiador com irresistível tino jornalístico: ele quer ver de perto os fatos que julga históricos no momento de sua apoteose, razão pela qual viaja aos lugares onde as rupturas estão ocorrendo.

É um desafio: “Estar lá – no próprio lugar, no momento exato, com seu notebook aberto – é um sonho inatingível para a maioria dos historiadores”, escreve Garton Ash em seu livro mais recente, Os Fatos São Subversivos (Companhia das Letras), que saiu no Brasil no começo de julho. Sua missão autoimposta é, como ele mesmo diz, “descobrir os fatos”, esses elementos que “subvertem mentiras, meias verdades, mitos e todos aqueles discursos fáceis que confortam homens cruéis”. Trata-se, portanto, de um historiador que não aceita a relativização pós-moderna, aquela que insiste em desmoralizar os fatos.

Nesta entrevista, Garton Ash, também colaborador do Estado, reiterou sua defesa da busca do interesse público na atividade jornalística e histórica, comentou sobre as revoluções que testemunhou, comparando-as com as rebeliões no mundo árabe, e avaliou a crise na Europa, o centro de seus 30 anos de trabalho. Para ele, “não podemos simplesmente deixar o euro acabar”.

A salvação do euro

“Há uma famosa frase de um sujeito que visitava a Irlanda e parou numa encruzilhada. Ele perguntou o caminho a um morador, que respondeu: ‘Não importa o destino; se eu fosse o senhor, apenas não pararia por aqui’. Obviamente nós, europeus, não podemos parar aqui, no sentido de que a União Europeia é muito grande para isso. Muitos dizem que a União Europeia é um frankenstein, que deveria ser menor e ter somente economias compatíveis, a maioria do norte da Europa. Mas é aqui que estamos, e o fato é que não podemos simplesmente deixar o euro acabar, porque teríamos um efeito dominó imediato. De onde estamos, parece claro que temos de salvar o euro como ele é. E isso significa que os alemães e outras economias ricas devem se envolver mais, os gregos e portugueses terão de apertar o cinto, os investidores privados terão de entrar com sua pequena parte e os países ricos terão de ter mais solidariedade. Depois dos acordos das últimas semanas, as chances de sobrevivência do euro melhoraram, mas definitivamente a moeda ainda está em perigo, porque, como todos sabemos, os mercados são a grande força, difícil de resistir. Estão à frente dos mais poderosos Estados, agindo em uníssono. Podemos resistir aos mercados?

Fragilidade política europeia

“Acho que a resposta do mundo político europeu à crise foi inacreditavelmente fraca. No meu livro, eu relato o crescente pessimismo sobre o futuro da União Europeia, um dos mais extraordinários projetos de política internacional de nosso tempo. Esse cenário foi criado justamente pela fraqueza política. A Alemanha é chave para a solução, mas a primeira-ministra Angela Merkel, até agora, liderou somente dos bastidores, preocupada com a opinião pública alemã. Ela é uma política brilhante, é muito boa em ganhar eleições, mas às vezes é preciso liderar pela frente, contra os ventos das pesquisas.

Revoluções e democracia

“Há um grande paralelo entre as revoluções na Europa a partir do final dos anos 80 e as revoltas no mundo árabe. No mundo árabe tivemos rebeliões espontâneas, muito impressionantes, em vários lugares. Duas delas, no Egito e na Tunísia, derrubaram o antigo regime virtualmente sem violência. Isso é revolução. Isso é 1989. Isso é fantástico, é inspirador. O que vem depois disso é outra questão, porque, claro, o ponto inicial da maioria dos Estados árabes é muito pior do que o dos Bálcãs, sem falar de Polônia e Hungria. Os Estados árabes não têm uma Europa Ocidental rica, de braços abertos, para ajudá-los. De modo que, acredito, o caminho árabe será mais longo e difícil. Embora não seja uma utopia pensar em democracia na região, certamente o resultado não será uma Suíça.

A revolução dos netos

“A revolução vai acontecer no Irã também. O que está havendo no Oriente Médio é diferente do que houve na Europa Oriental. Há um tsunami demográfico, que consiste em 50% a 60% da população com menos de 30 anos. Eu falei com essas pessoas, nas ruas do Cairo e no Irã também. E eles estão na internet, querem emprego, que não têm, querem moradia, que não têm, querem casar – e em muitas dessas sociedades você não pode casar se não tiver uma casa e um emprego. Há uma grande e irresistível força que já derrubou vários desses regimes e vai derrubar no Irã. Como eu disse no meu livro, a revolução não será dos filhos; será dos netos.

O modelo chinês como futuro

“Eu não diria que, graças ao sucesso chinês, o mundo caminhe para aceitar formas menos democráticas de organização política. O que eu acho é que, pela primeira vez desde o fim do comunismo e do fim da Guerra Fria, temos um competidor ideológico realmente sério. O terrorismo islâmico, que é uma grande ameaça a nossa sociedade, não é um competidor ideológico, porque não tem o mesmo apelo para dezenas de milhões de pessoas no Brasil, na Alemanha, na Grã-Bretanha, no Canadá. Mas o “capitalismo autoritário”, como praticado na China, tem forte apelo para muita gente no mundo em desenvolvimento, principalmente quando se vê o capitalismo liberal, nos EUA e na Europa, envolvido em tamanha crise. Eu não acredito que o “capitalismo autoritário” de estilo chinês vá ganhar a disputa, mas temos uma luta em curso, de modo semelhante à que tivemos ao longo do século 20.

“Deuses da força”

“O islamismo não é uma coisa única. O Islã envolve 1,5 bilhão de muçulmanos, e o que eles fazem varia muito de país para país. Eu vivo num país, a Grã-Bretanha, em que a maioria dos muçulmanos aceita o sistema político local. Não tenho dúvida de que a maioria dos muçulmanos da Europa vá aceitar essa ordem. Mas acredito que, nos países de maioria muçulmana, será um processo longo e complicado. E suspeito que teremos de passar por um período no qual os velhos regimes militares sejam derrubados, e então os muçulmanos moderados participem do debate político. A coisa mais importante que temos a fazer é manter nossa própria sociedade forte e vibrante, seja na Europa, seja nos EUA, seja no Brasil. Dessa forma, os deuses da força vão fracassar.

Jornalismo e poder

“Eu acredito piamente que os fatos sejam subversivos. No meu livro, dou o exemplo das armas de destruição em massa de Saddam Hussein. Se soubéssemos a verdade sobre essas armas, certamente não teríamos ido à guerra no Iraque. Aquilo teria feito a diferença. Eu não falo da “Verdade”, com letra maiúscula, porque isso é uma reivindicação muito mais ampla. A verdade tem vários aspectos, depende do contexto, depende da narrativa, depende de pontos de vista. Os fatos são geralmente sutis, mas, quando são conhecidos, eles afetam até o mais poderoso dos homens. No escândalo de Rupert Murdoch, trata-se, em primeiro lugar, de um caso em que um homem poderoso foi implicado por causa de fatos menores.

Regulação da mídia

“Em termos de mídia, acho que é muito perigoso ter muita regulação jurídica por parte do Estado. Porque isso significa, no final, que pessoas poderosas podem esconder algo e que temos uma relação com a imprensa como se fosse adversária. Mas precisamos de uma autorregulação muito melhor, um padrão jornalístico muito melhor. O que tivemos na Grã-Bretanha até agora, nesse sentido, foi a Comissão de Reclamações da Imprensa (Press Complaints Comission), que tem sido absurdamente fraca, e isso é resultado, em grande medida, do fato de que a grande mídia tem como controlá-la. A imprensa que desempenha sua necessária função atende realmente ao interesse público. Mas há a imprensa que hostiliza, que atende só ao interesse do público, de modo a vender anúncios. O interesse público é genuíno, porque visa ao funcionamento saudável do Estado. Simplesmente não há interesse público nenhum em saber da vida amorosa de Hugh Grant, mas certamente há muito interesse do público em ler sobre isso, e o News of the World (tabloide sensacionalista que foi pivô do escândalo Murdoch) sabia bem o que o público queria.”

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[Marcos Guterman é da Redação do Estado de S.Paulo]