Uma nota no obituário do Estado de S.Paulo (quarta-feira, 27/7, pág. C6) confirma aquilo que os amigos já sabiam de véspera pela troca de mensagens nas redes sociais: morreu o jornalista Ariverson Feltrin, 64 anos, especializado em transporte e logística. A especialização raramente aparece nos obituários. Apareceu no caso de Feltrin porque esta, realmente, era a sua marca.
Diria, como forma de homenageá-lo, que Ariverson Feltrin estava duplamente fora de moda, por sua especialização e pelo caráter, com a consistência do aço que molda os trilhos das ferrovias. Não foi à toa que o sociólogo americano Richard Sennet produziu o A Corrosão do Caráter, relato majestoso do quanto os novos formatos da economia degradam o que as pessoas deveriam ter de mais sagrado – a rigidez do caráter. Ariverson Feltrin deixou para trás um mundo onde as pessoas começam até mesmo a esquecer o que é e para que serve o caráter. Chegamos ao ponto de presenciar uma das nossas grandes entrevistadoras da TV olhar para a câmera e perguntar: “Nós todos temos falhas de caráter, não é mesmo?”
Ariverson Feltrin, como eu, viveu grande parte de sua vida no ABC Paulista. Estudamos no famoso colégio José Bonifácio de Carvalho, de São Caetano do Sul, fizemos teatro juntos e depois a mesma faculdade – Letras, na USP. Tomávamos dois ou três ônibus para ir e vir da universidade. Uma vez, descemos ao lado do antigo Mappin, no centro de São Paulo, e fomos detidos por um agente da polícia secreta do exército e levados para o quartel do DOI-Codi, ali no Paraíso (?), na rua Tutóia. Demorou para descobrirmos que a razão da detenção era a jaqueta usada por Ariverson, uma peça de uniforme privativa do exército. Confiscaram a jaqueta e nos liberaram. Nessa época, ele era revisor da Folha de S.Paulo e eu, repórter do Diário do Grande ABC, continuação do antigo semanário News Seller. Nossa “carteirinha” de jornalista facilitou muito a rápida liberação pelo DOI-Codi.
Editor que atrasa fechamento
Poucos anos depois, Ariverson dava início à sua especialização, como repórter de uma revista segmentada da Editora Abril. Estava metido na cobertura de transportes quando, insuflada pelas tecnologias digitais, a logística foi ressuscitada de antiga letargia. Especializou-se também em logística.
Ainda chocado pela notícia de sua morte, comecei a refletir sobre o momento em que os jornais e revistas de interesse geral começaram a desistir da especialização, fazendo uma clara opção pelo superficialismo. No final da década de 1980, trabalhava para o Grupo Estado e começava a ouvir, dos editores, as primeiras frases que depreciavam a especialização: “Fulano não apura mais, sabe mais que as fontes. Senta e escreve”, ou “A super-especialização mata o repórter que existe dentro de todos os especialistas”. Ariverson nasceu para o jornalismo como repórter e morreu como repórter, especializado.
Houve um período, de boas lembranças, em que o jornal Estado de S. Paulo só tinha editores especializados – em saúde, em educação, em meio ambiente, em urbanismo. A única “especialização” exigida hoje em dia é a da “rápida manipulação dos meios digitais”. Editor que atrasa fechamento está frito.
Redações são avessas à especialização
O superficialismo tomou conta das páginas. A cobertura, por exemplo, dos assuntos da sustentabilidade e das alterações climáticas é escandalosamente deficitária e ruim. Repórteres reproduzem literalmente o que lhes dizem as fontes. Se um cientista disser que o aquecimento global tem reduzido a clientela das prostitutas de Amsterdã, tenham certeza de que suas declarações serão publicadas.
Depois da faculdade, perdi Ariverson Feltrin de vista. Tinha apenas notícia de que ele continuava a escalar a sua especialização. No final dos anos 90, fomos contratados ao mesmo tempo como diretores da Gazeta Mercantil – eu, para cuidar da região de Campinas, e ele, da região de Ribeirão Preto. O novo cargo tirou-o da reportagem. Em poucos meses, pediu transferência para a redação, em São Paulo. Virou editor de Transportes e Logística. Vivemos juntos a crise (2001 a 2009) que matou a Gazeta Mercantil. Trabalhar numa empresa que atravessa uma crise do tamanho daquela que abalou a Gazeta é o mesmo que viver nas profundezas do inferno. Digo que é algo que não devemos desejar nem para os inimigos. Ariverson, contudo, deve ter sofrido menos que eu: tinha como lenitivo o isolamento típico da especialização – o contato com suas fontes, a vibração ante a descoberta de novos e saborosos assuntos, a capacidade de manter, em nome do bom jornalismo, aquele mínimo de motivação na equipe.
Não soube o que aconteceu com ele após a implosão da Gazeta. Não deve ter sido fácil a sua vida: as redações continuam avessas à especialização. Nenhum repórter tem o direito de saber mais que o seu editor. Se quiserem vencer a guerra com os meios digitais, imagino que jornais e revistas terão de resgatar a profundidade que já tiveram na abordagem de determinados assuntos. O certo é que Feltrin cansou de esperar pela chegada de novos tempos.
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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e do jornal Gazeta Mercantil]