Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O delírio mistura castas da extrema-direita

Ter olhos livres para ver é ver a partir do destino comum que nos cabe, como habitantes deste comum planeta, deste comum presente, sem distinção de classe, de gênero, étnica, intelectual, visto que só é possível ser livre no espaço da comum oportunidade, da comum segurança, do comum cuidado, da comum condição de existência. Só é possível ser livre como iguais, apenas aí é possível fazer proliferar e inventar nossas singularidades e diferenças, razão pela qual ser outro é buscar ser igualmente livre; é buscar a garantia comum de liberdade para todos, sem separação hierárquica, sem distinção que não seja a inspirada pela mesma comunidade de destino: a de sermos vivos e, logo, a do direito intocável à comum vida plena.

Digo isso a propósito do novo formato do programa de humor Zorra Total, da TV Globo, transmitido aos sábados após a novela das 9. Sei que parecerá injusto e mesmo ridículo cobrar de um programa de humor o não uso do recurso da caricatura, por ser intrínseco a qualquer piada. Humor é caricatura e somos todos caricaturais, logo somos todos risíveis. Explorar isso para produzir riso pode ter o efeito positivo de nos projetar no espelho de uma humanidade comum, pois pode nos mostrar que somos tanto mais caricaturais e ridículos quanto mais pensamos ou agimos como se não fôssemos.

E é precisamente aí que reside o problema, no pensarmos e agirmos como se não fôssemos comumente caricaturais, risíveis, na pressuposição de que somos melhores – por razões étnicas, econômicas, sexuais, culturais, linguísticas – que os outros. Quando partirmos de um ponto de vista (risivelmente) fundado numa ideia de superioridade, aí então a caricatura tem um endereço único porque igualmente preconceituoso em relação às sexualidades não heterossexuais, ao pobre, à mulher, ao negro, ao índio, ao mestiço, ao latino, ao muçulmano, ao falante de uma outra variável linguística que não seja a padrão; ao outro, enfim, porque não detém o delirante e caricatural perfil posto e imposto, não sem risível impostura, como hegemônico, verdadeiro, certo, lógico, verossímil, sério, credível, rigoroso, produtivo, indiscutível.

Além da animalidade

O humor não está além do bem e do mal, como nada e ninguém, e geralmente, sob o signo de um ponto de vista hierárquico, de superioridade, é usado para ratificar preconceitos, definindo o lugar do sério e o do desprezível, do digno e do indigno, do humano e do animal. Não foi circunstancial, a propósito, que Aristóteles, no século 4 antes de Cristo, num livro conhecido hoje como Poética,descreveu a comédia como um gênero que produz riso através do destaque do feio e do lado animal do homem, estabelecendo uma hierarquia entre o humano e o não humano; hierarquia que possui também motivações econômicas, de classe, se considerarmos que Aristóteles considerava a tragédia o gênero ideal para representar a nobreza, por ser, segundo ele, mais sério, mais altivo, mais digno, donde é possível concluir, por oposição, que a comédia é o gênero típico para representar o escravo e, por extensão, o pobre, o explorado.

A comédia, assim, se considerarmos a Poética de Aristóteles, é o gênero textual por excelência do e para o pobre, porque – esse é o preconceito – supõe-se que é do pobre que se ri; é do pobre que debochamos, pois o pobre é a caricatura do animal no humano, de modo que, rir do pobre, transformá-lo em caricatura, constitui uma maneira de hierarquizar os humanos, dividindo-nos em duas categorias, a saber: de um lado, o superior, os humanos divinizados, civilizados, nobres, dos quais não rimos, mas respeitamos; e, de outro lado, os humanos não tão humanos assim, dos quais rimos superiormente, porque os vemos como animais, como inferiores, como ignorantes, como bárbaros.

Existe, pois, uma milenar, hierárquica e preconceituosa proximidade semântica entre o pobre, o inferior, o ignorante, o animal, o bárbaro, como se fossem o nome comum da caricatura e do riso, de modo que, para produzir humor, basta confirmar essa proximidade semântica, misturando-a e ao mesmo tempo nos colocando de fora, como se não fôssemos pobres, inferiores, animais, bárbaros; como se não fôssemos a caricatura de nada, porque nos supomos à imagem e semelhança de Deus, da nobreza, do sério, do respeitável, do rigoroso, do bom, do correto, do padrão ouro, na ilusão de que reluzimos além de nós mesmos, além de nossa animalidade comum.

Elite que nem mora no Brasil

Eis aí o berço ou viveiro de todas as formas de racismo: o inferior de quem rimos e o superior ao qual devemos cultivar, imitar, respeitar, divinizar e, antes de tudo, ser. Está, assim, declarada a guerra ao outro, ao pobre, ao diferente, pois, a fim de ratificarmos ou incorporarmos o superior que risivelmente supomos ser, inferiorizamos, ridicularizamos, matamos.

Retomo, a partir daqui, o que chamei acima de novo formato de Zorra Total: a comparação do Brasil atual com um metrô suburbano, com o nítido propósito de debochar – transformando em caricatura – da projeção internacional que o Brasil alcançou sob o governo de Lula e agora de Dilma, como que a dizer, e dizendo, que o progresso brasileiro é o do Zé Povinho, do João Ninguém; o progresso dos inferiores, dos bárbaros, dos animais humanos, da sub-raça comandada por uma caricatural personagem intitulada Dil-Maquinista, representada pela atriz Fabiana Karla.

É dentro desse Metrô Zorra Brasil que a mistura étnico-cultural do povo brasileiro é objeto de humor racista porque vista e concebida como imprópria e incapaz de fazer-se como passageira de, por exemplo, um trem-bala ao estilo japonês. O progresso do povo brasileiro, esse é o preconceito, não passa ou passará de progresso de metrô periférico, dentro do qual o povo se mistura, em pé, e pode finalmente ser objeto de humor, como se fosse o lugar natural da animalidade, da corrupção, da idiotice, ignorância, na suposição de que, do outro lado, o “verdadeiro”, existe o nobre, o civilizado ou simplesmente, para dar nome aos bois, o delírio caricatural disso a que a TV Globo, falando em nome do PSDB, risivelmente acredita ser o do perfil humano digno do “incorruptível primeiro mundo”.

O Metrô Zorra Brasil, assim, é o terceiro mundo a que – segundo a TV Globo – estamos condenados quando não nos permitimos governar pela cosmopolita raça superior poliglota do PSDB ou da suposta e delirante elite brasileira, sobretudo esta – como o Faustão, a Xuxa, o Silvio Santos e tantos outros – que nem mesmo mora no Brasil, porque julga poder nos governar ou nos manietar televisivamente, habitando o caricatural superior espaço geográfico a que colonizadamente chamam de Nova York, Los Angeles, Flórida porque partem da premissa de que o Brasil não é o lugar para eles morarem, estudarem, com suas respectivas famílias, por ser, essa é a milenar comédia colonial, o lugar inferior de um povo ignorante, inculto, bárbaro.

Crença fundamentalista

O que fica claro, portanto, com o Metrô Zorra Brasil, é o consciente inconsciente racista da TV Globo e, a partir dele, o modo como ela verdadeiramente nos concebe, para além das hipocrisias e demagogias de circunstância: como inferiores, ignorantes, periféricos, bárbaros, impróprios, incultos, animais.

É a partir desses preconceitos todos que, por exemplo, Faustão, no seu programa de domingo, de quando em quando se acha no direito de nos dar lições de moral e de boa educação, seja nos dizendo como proceder, seja fazendo divulgação de pintores ou de livros. Faustão parte da premissa de que somos ignorantes e que seu programa deve cumprir, no delírio risível dele, este civilizado papel: ensinar-nos a não ser a gente mesmo, bárbaros e analfabetas, mas o que ele supõe que seja exemplo de civilização, de cultura, de bom gosto.

É, portanto, através de um suposto ingênuo programa de humor, como Zorra Total, que podemos tristemente confirmar que o delírio racista e genocida do norueguês Anders Behring Breivik, responsável pela chacina que resultou na morte de 93 pessoas na Noruega, não é um ato isolado de um louco, mas a ponta do iceberg ou o acúmulo milenar de uma humanidade profundamente perdida, porque dividida em opressores e oprimidos, superiores e inferiores, legítimos e ilegítimos.

Sob esse ponto de vista, qual é a diferença significativa, senão de gênero discursivo, entre o manifesto de ódio de 1.500 páginas, intitulado “2083: uma declaração europeia de independência”, do assassino em série de extrema direita norueguês, Breivik, e o Metrô Zorra Brasil, da TV Globo, se ambos se inscrevem numa mesma enraizada crença fundamentalista de superioridade racial, cultural, civilizacional de uns humanos em relação a outros?

Derrotada e neoliberal

Se, no manifesto de Breivik, o Brasil é citado como exemplo de fracasso civilizacional em função da mistura étnico-cultural do povo brasileiro, não é igualmente a mesma premissa ou racista missa que o programa de humor Metrô Zorra Brasil assinala e confirma, quando nos apresenta como motivo de riso, por sermos misturados, logo avacalhados, banais, alienados, corruptos, inviáveis?

Há menos mistérios entre o céu e a terra que supõe a nossa profunda filosofia, já não nos dissera um poeta. É por isso que é perfeitamente possível conectar os opostos, representados seja pelo sério suposto de um gênero textual auto-designado como profético, o manifesto do neonazista Breivik; seja pela comédia de costumes – do misturado povo brasileiro – do programa Zorra Total da TV Globo.

Ambos são exemplos da zorra total que as elites do atual presente histórico estão fazendo com o mundo; a zorra total da globalização neoliberal, a misturar, sem rigor algum, o privado com o público, o individual com o coletivo, a direita com a esquerda, a paz humanitária com a guerra genocida; a concentração da riqueza, como nunca, com a democratização da idiotice e do egoísmo; a privatização de ativos estatais com a estatização de passivos privados; a barbárie com a civilização; a tragédia com a farsa, a pura TV Globo com o misturado povo brasileiro.

O mais lastimável, não obstante tudo isso, é ver um governo, como o da Dilma Rousseff, cometendo os mesmos erros do primeiro mandato do governo Lula, correndo o sério risco, assim, de transformar-se em uma verdadeira e caricata comédia daquilo de que sempre foi acusada, enquanto candidata: a de ser uma continuidade do Lula. Se, pelo menos, fosse o terceiro tempo da partida. Por que insiste risivelmente a voltar à cena rendida, derrotada e neoliberal do primeiro tempo ou primeiro mandato de Lula?

A hora é agora

Por que a zorra dos juros altos, a beneficiar meia dúzia de especuladores, insiste a nos desfechar trens balas no coração do divino direito de morarmos, termos saúde, educação e alegria, segurança, presente e futuro comuns? Por que não nos assumamos como cosmopolitas da alquimia da mistura étnico-cultural, marcados pela mesma comunidade de destino, sem que venhamos, como nosso colonizado destino manifesto, a distribuir bilhões para uma casta superior, enquanto a maioria fica a ver navios com um Bolsa Família que sequer paga o aluguel de um barraco insalubre, impróprio, caricatural? (Deixo claro, aqui, que não sou contra o Bolsa Família, mas contra a ordem hierárquica dos fatores que, nesse caso, altera o produto de nossas vidas, tornando-as miseráveis, caricatas.)

Por que, presidenta Dilma Rousseff, não comece, com urgência urgentíssima, o terceiro tempo do governo Lula, com o seu próprio singular tempo sem juros, ao qual você mesma sugeriu ou esboçou quando trouxe da Argentina o quadro “Antropofagia”, de Tarsila do Amaral, para mostrar justamente a Obama, o presidente da rapina da águia imperialista? Por que não ruminamos de vez, antropofagicamente, nossa humanidade comum, devorando todo resquício de privilégio de classe e de casta, sem que venhamos precisar da garantia do pré-sal, e outros ativos, para, ilusoriamente, empenhamos o nosso futuro com as eternas prestações do fiat lux da zorra total do cassino neoliberal, global, com um presente financiado a juros estratosféricos?

Por que, enfim e em começo, não começamos, presidenta, a sermos credores de nós mesmos, de nossa infinita coragem para nos inventarmos, sem a tragédia da servidão financeira e a comédia suburbana do delírio da mistura de castas da zorra total de nossas elites?

A hora é agora e não tem outra, além, lá fora.

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]