Diz o bom senso que para se criticar um programa de TV é preciso assisti-lo. Mas, quando se trata de um programa como o Hipertensão, da Rede Globo, mando o bom senso às favas e me recuso a ver.
O que assisto nas chamadas, durante a programação, já me basta.
Fazer uma pessoa quase se afogar em um cubo de acrílico cheio de leite, fazer com que seres humanos comam uma pizza que, entre outros ingredientes desagradáveis, é recheada com vermes, baratas, minhocas e olho de peixe é algo inacreditável.
Será que é só o prêmio (R$ 500 mil) que faz com que essas 16 pessoas se submetam a este ‘circo dos horrores’ em rede nacional? Ou a promessa dos tais 15 minutos de fama fala mais alto?
Segundo os sites que acompanham a programação da TV, o primeiro episódio, comandado pela apresentadora Glenda Kozlowski, alcançou 15 pontos de audiência, ou seja, cerca de 30% dos aparelhos ligados no horário. Não há, no entanto, um consenso entre esses próprios sites se esta audiência pode ser considerada boa ou não. Mas o certo é que existe uma fatia do público que acha interessante ver pessoas tentando, por exemplo, beber um tipo de vitamina que mistura banha e sangue.
Acho incrível o fato de uma pessoa se sentar numa poltrona, em frente a um aparelho de TV para ver outra sofrer. Trata-se de um coeficiente de sadismo que vai além da minha compreensão. Deve ser aquele mesmo motivo que leva motoristas a passarem devagarzinho no local de um acidente para ver os detalhes da tragédia. Ou aquele impulso de levantar o plástico preto para ver um defunto no meio da rua.
Pra que serve controle remoto?
Esta não é a primeira edição do programa e também este artigo não é a primeira crítica a ele. Em 2002, o jornal O Estado de S. Paulo questionou a validade de uma atração como esta e noticiou a iniciativa de um advogado e professor universitário paulista de entrar com um recurso no Ministério Público pedindo que fosse impedida a exibição de provas que atentassem contra a dignidade das pessoas. Na época, a TV Globo emitiu a seguinte nota, reproduzida pelo jornal: ‘O programa coloca os interessados em disputar suas provas frente a frente com seus medos e os desafia a superá-los, física e psicologicamente. A cada um deles é dada a possibilidade de desistir da realização das provas durante a gravação do programa.’
Em defesa do Hipertensão, o que posso dizer é que ele está longe de ser o único representante deste tipo de programa trash. O respeito com a dignidade humana parece mesmo estar em falta na TV brasileira, seja na exploração de dramas pessoais, na exploração abusiva de conteúdo sexual ou no vale-tudo dos reality shows. A quantidade de produtos de baixa qualidade é tão grande quanto a quantidade de canais que hoje as TVs a cabo nos disponibilizam.
E a saída é apenas uma, mudar de canal. O que move essas baixarias televisivas é a audiência. Se ela é baixa, o programa sai do ar. É simples assim.
Alguns de vocês podem achar que estou sendo radical e, creiam, a intenção é exatamente essa. Este texto é para questionar nossos hábitos frente à telinha; questionar o porquê de assistirmos algo de mau gosto pelo simples fato de que aquilo está sendo exibido.
Controle remoto serve para isso.
Tudo em nome do entretenimento
Outro ponto questionável em um programa como o Hipertensão é o fato de colocar seus participantes em risco. É claro que, como se trata de um programa gravado, não corremos risco de ver uma morte ao vivo na nossa sala de estar. Mas que o perigo é iminente, isso é.
Numa prova, que vi no site do programa, um carro afunda na água e um dos participantes tem que deixar o banco do motorista e retirar o parceiro, trancado dentro do porta-malas. E se quem está lá dentro entrar em pânico e sofrer um ataque cardíaco? Essas situações extremas mexem com o sistema nervoso das pessoas e, consequentemente, com todo o resto do corpo.
Será que estou sendo alarmista?
A citada reportagem do Estadão tratou de explicar a estrutura montada pela emissora: ‘Quanto ao risco oferecido pelas provas, a Central Globo destaca que todas as provas – tanto as realizadas nos programas produzidos no exterior, pela Endemol, como as que são feitas no Brasil – são preparadas e testadas por dublês profissionais e realizadas com equipamento de segurança, além de serem acompanhadas por equipes médicas. `Nas provas que envolvem animais, por exemplo, são utilizados espécimes criados em laboratório, alimentados com rações balanceadas, porém preparados de forma a causar sensações de repulsa que devem ser superadas pelos competidores´.’
O jornal também afirmava que todos que se arriscam a participar da atração global assinam um termo de responsabilidade, isentando a emissora no caso de acidentes que possam vir a acontecer em função das provas. E que, além da estrutura de médicos, outros profissionais especializados que acompanham cada desafio. Segundo a reportagem, a emissora também contrata uma apólice de seguros (de valor não divulgado) em nome de cada participante.
Não sou ingênuo e sei que os maiores cuidados são tomados pela produção, mas fico imaginando qual seria o discurso da emissora e dos demais meios de comunicação caso um dos participantes morresse durante uma dessas provas. Com certeza haveria muito barulho e muito choro sobre o leite derramado.
Enquanto isso não acontece (e tomara que nunca aconteça), programas bizarros como este vão continuar se espalhando por nossa televisão. Tudo em nome do entretenimento. Afinal, como diriam os mestres do espetáculo: The show must go on (O show não pode parar).
******
Jornalista, professor da Uerj e editor-executivo do Observatório da Imprensa na TV