Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Punição pela verdade

A morte, única certeza de nossa existência e, paradoxalmente, nossa grande dúvida, é encarada com medo, mistério, respeito e é repudiada quando ocorrem brutalmente acidentes, crimes, suicídios. É fato incontestável que “matar” é considerado um ato repulsivo pela civilização organizada – por isso existem leis que condenam a prática e, antes disso, posturas religiosas e morais.

No cristianismo, há o mandamento que afirma: “Não matarás”. Porém, antes do cristianismo, linhas de pensamento orientais já repudiavam a morte mediante a utilização da violência. No milenar texto Tao Te ching – atribuído a Lao Tse –, há passagens que criticam a violência e a consequente perda da vida.

A imprensa sempre destaca crimes e eventos nos quais a morte paira. E, em decorrência da coragem e envolvimento dos profissionais da informação em manter a sociedade a par das querelas que a circundam, jornalistas deixam de reportar a violência para serem vítimas dela. Nos últimos vinte anos, 869 jornalistas foram mortos em razão do trabalho que desenvolviam – investigações que visavam a denunciar criminosos que se travestem de autoridade para se garantir mediante o desvio de verbas e também ceifando vidas para atingirem seus objetivos de enriquecimento.

Números oficiais

As estatísticas, não nos enganemos, ilustram parcialmente a realidade. É impossível confiarmos plenamente em números oficiais, mas eles ajudam a termos um ponto de partida para refletir sobre situações que ocorrem ao nosso redor e, por que não, onde estamos. Vamos tirar o manto que encobre a realidade, os números, e encaremos cada número desses como uma vida, uma história, uma existência que coabitava com tantas outras.

Assim como milhares de pessoas mortas pelo mundo, os jornalistas aqui mencionados em números – a lista com o nome dos 869 pode ser consultada no site do CPJ – são vítimas da ganância humana. O único animal que merece a alcunha de selvagem somos nós, seres humanos, pelo que fazemos aos nossos semelhantes e aos nossos “diferentes”. Porém, e ainda bem, há exceções. Grande parte dos profissionais da comunicação assassinados estavam trabalhando para combater as desigualdades e injustiças praticadas por uma minoria que (sei que é clichê, mas é fato) tira da maioria para se garantir – uma síndrome de Robin Hood às avessas.

Segundo a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), 2011 pode ser considerado o ano mais trágico para a imprensa latino-americana dos últimos vinte anos. Até o final de julho, foram registrados 19 assassinatos de jornalistas em países da região.

Historiadores do imediato

O último assassinato ocorrido até o final do primeiro semestre deste ano foi o do jornalista político brasileiro Auro Ida, 53 anos. Segundo informações da imprensa, ele estava em seu carro, acompanhado pela namorada, no início da madrugada, quando um suspeito se aproximou de bicicleta, mandou a namorada da vítima sair do carro e, em seguida, atirou contra o jornalista. O acusado chegou a ser localizado e detido pela polícia, mas foi liberado por falta de provas. Ida foi secretário municipal de Comunicação em Cuiabá.

O caso do jornalista brasileiro ilustra a atual realidade das investigações, capengas, realizadas pela polícia brasileira. Segundo levantamento divulgado pelo Conselho Nacional do Ministério Público em 9 de maio deste ano, existem no Brasil quase 152 mil inquéritos sobre homicídios ainda sem solução. O assassinato de Auro Ida é o quarto registrado, somente neste ano, em terras brasileiras. Segundo o Commitee to Protect Journalists (CPJ), o Brasil registra, desde 1992, 17 assassinatos de comunicadores.

O caso que mais repercutiu foi a morte de Tim Lopes, covardemente morto por um chefe de facção criminosa no Rio de Janeiro conhecido como Elias Maluco. O marginal ganhou a alcunha de “maluco” por usar métodos cruéis para executar suas vítimas – como a utilização de uma espada de samurai, usada para decapitarTim.

Não é a pretensão deste texto afirmar que a morte de jornalistas é mais importante do que a de outras vítimas da violência que assola a humanidade. No entanto, diferentemente de situações factuais – registradas estatisticamente como índices de violência pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) –, o assassinato de jornalistas é uma forma de silenciar vozes com potencial, vontade, coragem para lutar – pacificamente, com palavras – denunciando as arbitrariedades que constituem o sistema de acumulação de renda no qual vivemos e que é apresentado como “normalidade”. Por isso afirmo: não é natural crer ser melhor que os outros em razão da acumulação de renda e matar, principalmente, para atingir esta mesquinha meta.

Enquanto tivermos voz e as pessoas confiarem na seriedade do trabalho dos jornalistas –historiadores do imediato em que vivemos – para ampliar essa “voz”, a esperança se manterá viva na memória de quem fica e na lembrança dos que foram acreditando que, um dia, as coisas irão mudar.

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[Alfredo Henrique é jornalista, Guarulhos, SP]