“Se você procurasse uma editora, em 1981, com uma proposta de um romance de ficção científica que consistisse numa clara e simples descrição do mundo atual”, disse William Gibson recentemente ao semanário The Paris Review, “após terem lido sua proposta, eles diriam: `Bem, isto é impossível. É ridículo.´” Você receberia reação semelhante se tivesse ido a uma editora no início deste ano com uma proposta de romance mais ou menos assim: jornalistas de um tabloide britânico grampeiam e apagam mensagens de voz da caixa postal de uma adolescente desaparecida (assassinada, como ficamos sabendo). Suas atividades são reveladas por um jornal rival, para a indignação do grande público.
O jornal em questão é fechado por seu proprietário, embora tivesse uma circulação de milhões de exemplares. Autoridades policiais de primeiro escalão, que deram emprego a ex-jornalistas desse jornal como assessores de imprensa, renunciam. Surgem provas de pagamentos feitos ilegalmente pelo jornal para corromper policiais em troca de informações sobre celebridades, políticos e vítimas de criminosos. Vários jornalistas são detidos, inclusive dois ex-editores do jornal, um dos quais trabalhara para o primeiro-ministro. Um cidadão que era fonte de informações é encontrado morto (embora a polícia diga que nada há de suspeito). O proprietário do jornal, magnata que detém um império internacional de mídia, é citado para depor perante o Parlamento. E as revelações de coisas erradas continuam chegando.
O escândalo que começou no News of the World e agora ameaça alastrar-se pelo resto do império global de mídia de Rupert Murdoch e até além dele, parece, na verdade, ter mais em comum com um remake britânico do seriado 24 do que com o romance sobre jornalistas Scoop (Furo), de Evelyn Waugh, de 1938, até hoje amplamente considerado uma obra-prima e uma sátira incomparável sobre a imprensa inglesa. Seu enredo não se desenvolve em torno de ações criminosas, mas num caso clássico da farsa de troca de identidades. Ao invés de enviar John Courteney Boot, badalado romancista e narrador de viagens para cobrir “uma guerrinha bastante promissora” na República de Ishmelia, na África Oriental, The Daily Beast despacha William Boot, o educado e distraído autor da “meia coluna bi-semanal dedicada à natureza” do jornal. Sua completa falta de experiência jornalística torna-se útil quando, em vez de seguir uma pista falsa, acompanhando o resto da imprensa internacional, ele fica para trás, na capital da Ishmelia, Jacksonburg, e fura todos eles.
A depravação isolada
A mentalidade de boiada dos jornalistas e a negligência para com algo tão maçante como “a verdade” é, em parte, no que Christopher Hitchens pensava quando, na introdução que fez à edição de 2000 da Penguin Classics, ele a chamou (e deveria saber do que falava) “um romance de realismo impiedoso; o espelho da sátira refletindo o lado brutal da imprensa como nenhuma outra narrativa o fez, exceto Front Page, de Hecht e MacArthur e, até certo ponto, Towards the End of the Morning, de Michael Frayn.
O romance de Frayn, publicado em 1967 – um ano antes de Murdoch comprar o News of the World – pode ser visto como um presságio da transformação que Murdoch trouxe à imprensa britânica. O livro baseia-se nas experiências que Frayn teve no Guardian e no Observer, jornais standard de centro-esquerda, tão distantes do News of the World quanto é possível aos jornais ingleses. O caos administrativo do cantinho tranquilo de um jornal sem nome – onde “notas sobre a natureza” (sombra de William Boot), obituários e palavras cruzadas são editados em conjunto – é perturbado pela chegada de um jovem extremamente eficiente. “Você se imagina capaz de trabalhar num jornal pelo resto de sua vida?”, pergunta uma personagem. “Eu me imagino sendo proprietário de um”, responde ele.
A transformação foi registrada de maneira mais completa em Yellow Dog (2003), de Martin Amis, cujo jornalista psicótico do tabloide, Clint Smoker, torna quase qualquer outro exemplo da brutalidade da imprensa inglesa parecer de uma pureza celestial. Smoker, “um jornalista realmente muito bom”, trabalha para o jornal The Morning Lark, onde a equipe se refere aos leitores por um epíteto impublicável e “até agora nenhum cataclismo global teve força suficiente para tirar a foto da garota atraente da primeira página”. Ele é racista, misógino, detestavelmente feio e tem uma fixação pelo seu pênis pequeno. Cria suas matérias fazendo relações entre jogadores de futebol e modelos. “Você poderia achar que o desdém demonstrado pelos repórteres tanto pelos temas quanto pelos leitores é exagerado”, escreveu Hitchens sobre o romance de seu amigo Amis, “mas você estaria errado.” Com certeza. Mas o ódio infernal de Amis pelos funcionários da imprensa de esgoto é tão devastador que ele deixa de perceber um ponto: a depravação de Smoker fica obscuramente isolada do restante da sociedade.
“O dia mais humilde da vida”
Por outro lado, parte do que permanece tão brilhante em Scoop, é seu retrato natural da alegre corrupção que lubrifica as engrenagens da sociedade a todos os níveis. Assim que William Boot chega à redação do jornal The Beast, ele é enviado para seguir uma pista que veio do “telefonema de um policial de plantão”. A esposa do ministro da Defesa fora vista dirigindo seu carrinho para um banheiro masculino na Sloane Street. Quando Boot chega lá, já se havia juntado uma “densa multidão”, mas ele segue na cola de um fotógrafo que abria espaço para passar. Um policial pergunta-lhe onde vai. “Imprensa”, Responde William. “Sou do Beast.” “Também sou”, responde o sargento. “Vá em frente.”
A pouca vergonha disso é comicamente exagerada (não é?), mas parece quase antiquada se comparada com o que se diz que fizeram o News of the World e a polícia metropolitana. E, no entanto, a cena pode dar uma pista para entender por que a recente fúria do público apanhou de surpresa jornalistas e policiais. Será que não era do conhecimento de todo mundo que eles estavam conchavados? Por outro lado, voltar leitores escandalizados contra pessoas que idolatravam apenas uma semana antes ou transformar pecadilhos inocentes em pecados imperdoáveis vem sendo, há muito tempo, um dos truques preferidos dos tabloides. Portanto, não deveriam, com certeza, ficar surpreendidos quando finalmente acontece com eles.
O presente imbróglio também supera os exageros satíricos de Waugh de outras maneiras. À entrada do fictício Megalopolitan Building, 700-853 na Fleet Street [rua de Londres onde ficam as redações dos principais jornais], há uma “efígie em ouro e marfim de Lorde Copper”, o proprietário do jornal The Beast, “em trajes de coroação, sobressaindo acima da multidão, num pedestal poligonal de malaquita”. Nas raras ocasiões em que seus empregados o encontram em carne e osso, não ousam contradizê-lo, utilizando-se, em vez disso de uma fórmula muito citada: “Até certo ponto, Lorde Copper.” Porém, mesmo sua megalomania monstruosamente insuflada empalidece, se comparada ao egoismo do principal executivo da News Corp. Quando Murdoch interrompeu o depoimento de seu filho perante o comitê parlamentar, em 19 de julho, para dizer que aquele era “o dia mais humilde de sua vida”, você fica com a forte sensação de que não houve muita concorrência.
“Eu sei escolher meus amigos”
Carl Bernstein não é o único jornalista que descreveu o escândalo das escutas clandestinas como o Watergate de Murdoch: poderia o escândalo permitir, tal como ocorreu nos Estados Unidos, que brotasse na Grã-Bretanha uma fictícia conspiração paranoica? Também aqui, Scoop é até certo ponto um romance conspiratório, embora a conspiração seja abertamente visível. A sra. Stitch, que dirige seu carro para o banheiro masculino da Sloane Street, não é apenas a esposa do ministro da Defesa do Império, mas também uma anfitriã da alta sociedade e mecenas de literatura. É ela que dá início ao enredo ao pedir a Lorde Copper que envie seu protegido John Courteney Boot para Ishmelia. Esse encontro não se dá de maneira sigilosa, mas numa “festa de almoço”: todo mundo sentado à mesa, ao vê-la exibir seu charme, pergunta-se o que “poderia ela querer dele”; uma vez reveladas suas intenções, todos passam a elogiar Boot. O outro Boot, portanto, consegue seu furo na Ishmelia graças à cortesia de uma diplomata britânica que, por acaso, fora com ele a uma escola particular.
Essas redes de patrocínio ainda existem atualmente, e de maneira sinistra: o primeiro-ministro David Cameron fez a faculdade (Eton e Oxford, para ser preciso) com quase metade dos seus ministros; políticos importantes, autoridades policiais e a equipe de Murdoch do News International não tinham apenas o hábito de dar emprego uns aos outros, mas de se reunir em encontros sociais. Você pode dizer conspiração; eu digo festa de almoço. Como diz uma personagem – suspeitosamente bem-relacionada – do livro The Day of the Owl (1961), de Leonardo Sciascia, ao negar a existência da máfia: “Acredite, eu sei escolher meus amigos.” Ou não, conforme o caso.
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[Thomas Jones é editor do blog da London Review of Books]