“Pouco se podia esperar de um homem que sai para a rua calçado com uma meia branca e outra preta e levando por gravata no pescoço a meia preta que lhe faltava na perna que ia de branco”, escreveu um leitor do Correio do Rio de Janeiro, assinando-se “O Braziliense”. E disse outro leitor: “Não senhor, não é assim, ele está em perfeita saúde; nem a meia preta no pescoço em ar de gravata é símbolo de demência; prova, sim, que nesta ocasião estava distraído. O homem é hipócrita, é egoísta, creio eu”.
O “Braziliense” autor da primeira carta era provavelmente o redator e dono do jornal, João Soares Lisboa. A pessoa a quem era atribuída essa curiosa noção da moda masculina era José da Silva Lisboa, futuro visconde de Cayru, de idade já avançada. Um Lisboa, João, era liberal, defensor de drásticas mudanças políticas e se digladiou constantemente pela imprensa com o outro Lisboa, José, defensor do trono e do altar, conhecido pelas ideias conservadoras e crítico feroz da Revolução Francesa, “maravilha fatal de nossa idade”.
Cayru respondeu que o Correio do Rio de Janeiro era o “veículo geral da injúria”, o “Correio das Más Novas”. Disse que Soares Lisboa, a quem chamou “João Burro, de Lisboa, famoso estúrdio no tempo do Tutu Pombal, ganhou esse nome pela habilidade de dar cabeçadas em burros de saloios e postes da rua Augusta, divertindo os gaiatos da Praça do Comércio e saca-lenços do Rocio; mas enfim foi parar à calceta e dar a ossada na Trafaria.” (Saloio era o camponês que morava perto de Lisboa; a expressão era também sinônimo de aldeão, rústico. No trecho há referências a vários logradouros dessa cidade).
Por sua vez, o redator do Correio referiu-se a Cayru como “um escritor brasiliense que só delira por efeito da demência, não de malícia ou vontade”, e dizia que o despotismo era o ídolo de seu coração.
Exibicionismo pedante
Sabe-se pouco sobre os primeiros anos da vida de Soares Lisboa. Nascido em Portugal, veio jovem para o Brasil, possivelmente em 1800. Comerciante atacadista, com conhecimentos de comércio e escrituração mercantil, pleiteou um cargo público, mas desistiu quando lançou o jornal. Foi um dos primeiros e principais defensores da independência do Brasil. Disse ter sido o primeiro a reclamá-la em público.
Não tinha estudos universitários, o que lhe era frequentemente lembrado pelos adversários, ao que ele respondia: “Mas quantos estúpidos foram a Coimbra e voltaram da mesma forma que foram, senão piores”. No primeiro número do Correio do Rio de Janeiro ele exagera suas limitações intelectuais ao escrever que, quando lançou o jornal, “não tínhamos suficiente cabedal intelectual de luzes para ilustrar e dirigir-nos à opinião pública, mas tínhamos a firmeza de caráter e probidade manifestada”. Os concorrentes chegaram a duvidar que ele escrevesse os artigos que publicava.
O Correio do Rio de Janeiro teve duas etapas. A primeira vai de 10 de abril até outubro de 1822, quando, perseguido pelo governo de José Bonifácio de Andrada e Silva, Soares Lisboa teve que fugir para Buenos Aires. A segunda, de agosto a novembro de 1823, quando foi embarcado num navio para ser deportado para a Europa – onde nunca chegou.
O jornal era impresso na tipografia de Silva Porto, que Soares Lisboa administrava e da qual era sócio. Como a maioria dos jornais, tinha quatro páginas, mas, ao contrário da maioria, circulava diariamente. Custava 80 réis o exemplar avulso e 10$000 (10 mil réis) a assinatura anual. Destacou-se por publicar, além dos artigos de Soares Lisboa, numerosa correspondência dos leitores.
Carlos Rizzini disse de Soares Lisboa, a quem considera “ferrenho e desabusado”, que, “em que pese aos que até hoje o qualificam de bronco e ignorante, foi o melhor jornalista de seu tempo. Era quem melhor escrevia”. Uma carta num jornal concorrente, O Espelho, chegou a elogiá-lo pela “elegância e facilidade de seu estilo e muitas vezes pela força e a justeza de suas reflexões”. Nelson Werneck Sodré o considerou um “articulista fácil, simples, contundente, eficaz em sua argumentação, apreciado pelos que tinham as mesmas ideias, temido pelos adversários, com grande influência na opinião”, e de excepcional coerência de pensamento; também o elogia pela lucidez da visão, clareza na orientação, firmeza na conduta e coerência.
Isabel Lustosa discorda de Rizzini e afirma que Soares Lisboa derrapava no vernáculo e tinha um excesso de franqueza, de ingenuidade na forma como se dirigia e se expunha ao seu público, e de transparência no manejo do jornal, no qual deixava claro quais eram seus interesses. Helio Vianna ignora Soares Lisboa e o Correio em sua História da Imprensa Brasileira.
Na verdade, ao contrário da linguagem rebuscada, dos circunlóquios e do pedante exibicionismo de erudição da maioria dos jornalistas da época, que o ridicularizavam pela falta de estudos formais, Soares Lisboa era direto. Escrevia com facilidade e com graça, o que não se pode dizer da maioria de seus adversários. Mas é certo que nem sempre usava corretamente o vernáculo.
Campanha sórdida
Desde o começo, o Correio do Rio de Janeiro destacou-se como um jornal radical e democrático, colocando com insistência a soberania popular, o “sagrado direito do homem”, por cima da soberania do monarca. Ele dizia estar penetrado “do mais vivo amor à santa liberdade”. Soares Lisboa era um grande admirador de outro jornalista panfletário, Cipriano Barata.
Mas, ao contrário dos jornais governamentais, como o Diário do Governo e O Espelho, ou de publicações radicais e jacobinas, como as de Cipriano Barata, ou O Tamoyo, dos Andradas, o Correio não participou das campanhas que atacavam indiscriminadamente os portugueses que moravam no Brasil. É evidente que, pelo fato de ter nascido em Portugal, Soares Lisboa não podia tomar outra atitude: era atacado com frequência por esse motivo, inclusive por d. Pedro – que, como ele, nascera em Portugal. Mas Soares Lisboa também enxergava o perigo de que os ataques aos portugueses estimulassem a divisão interna, em vez de fortalecer a união até se conseguir a independência.
Alfredo de Carvalho escreveu que Soares Lisboa foi “um dos homens que mais esforçada e sinceramente pugnaram pela nossa emancipação política. Dos primeiros que abraçaram a ideia da independência”.
Foi ele quem primeiro defendeu a necessidade de uma Assembleia Constituinte e de implantar as cortes no Brasil, para não ter que submeter-se às determinações das cortes de Lisboa, que tentavam restaurar no Brasil a legislação da época colonial. Para convocar os procuradores provinciais, escreveu: “Representemos ao nosso Regente [D. Pedro] que queremos, porque precisamos, já, já e já, Cortes, Cortes, Cortes”. A ideia da Assembleia Constituinte, apoiada pelo Reverbero Constitucional Fluminense, de Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa, deu lugar a um documento, a “Representação do povo do Rio de Janeiro”, assinada por seis mil pessoas.
Cayru, sempre disposto a atacar o menor indício de liberalismo e qualquer ameaça ao poder real, reagiu contra a iniciativa: “… desadoro, clamo, e protesto, contra o projeto anticonstitucional e incendiário, de sedução Popular, e de tremenda responsabilidade, anunciado no Correio e ora corrente pelo Prelo, com título de Representação a S.A.R por via do Senado da Câmara”. Era “o plano mais anômalo, cerebrino e extravagante que se podia imaginar nas atuais circunstâncias”; a “requerida assembleia é mera farsa e paródia da que perdeu a França e a Europa”. E: “Pretende-se, à Francesa, igualar coisas desiguais?”, perguntou, em referência ao temido espectro da Revolução Francesa, que tanto o apavorava. Respondeu Soares Lisboa: “Ainda bem que todos conhecemos o homem: servil, teimoso, adulador, cheio de vaidade, de velhice”.
Os jornalistas tinham uma maneira oblíqua e reverencial para dirigir-se ao príncipe-regente e depois imperador. Não Soares Lisboa, que deixava os circunlóquios de lado. Por instigação de Gonçalves Ledo, numa carta pessoal encaminhada a d. Pedro, que não se definia em relação à convocação da Assembleia Constituinte, ele escreveu:
“Senhor: falemos claro, ou V.A.R. [Vossa Alteza Real] quer representação nacional no Brasil ou não quer. No primeiro caso, pode contar com um defensor denodado dos seus direitos, no segundo, não posso servir a V.A.R. e atrevo-me a dizer que perde o Brasil para sempre”. E, a seguir: “Nunca V.A.R. verá escrito meu de servilismo; deixei de ser vassalo e não voltarei à escravidão. Se os Portugueses se deixarem avassalar, deixarei de ser português e buscarei em terra estrangeira a augusta liberdade”.
Com base nessa carta confidencial, dois servidores do Paço abriram processo contra seu autor. D. Pedro disse não saber disso e autorizou a publicação da carta no Correio do Rio de Janeiro. O processo não andou.
Mas Soares Lisboa foi objeto de uma sórdida campanha feita pelo jornal O Espelho; alguns dos artigos foram escritos pelo príncipe-regente e seus validos. Um deles diz de Soares Lisboa: “Conheça-se, Sr. Arce Boliza; V.M. não é escritor, não é coisa alguma na República literária, é um triste Rocinante, um miserável porta-freios, vá arrastando a sua perna, sempre na companhia dos bon vivants que lhe fazem roda”.
“Partidário mais leal”
Quando, finalmente, foi convocada a Assembleia, Lisboa, em outra carta, fez ver a d. Pedro o que significava esse gesto: “Ah! Senhor, que fizestes? Uma Assembleia Constituinte em que se acha representada a soberania da nação é superior a vós, e no momento de sua instalação vós deixais de ser príncipe de fato, conservando só vossa dignidade de direito!!!”.
Soares Lisboa tinha insistido na necessidade de eleições diretas dos representantes na Assembleia e do juramento prévio da Constituição por d. Pedro. Ao ser determinada a escolha indireta, ele se dirigiu de novo ao príncipe: “Quem autorizou V.A.R. para mandar o contrário daquilo que lhe Representaram os Povos desta Província?”
(Com estas cartas abertas, repletas de atrevimento, Lisboa dizia a d. Pedro que a Assembleia era superior a ele; que ele devia submeter-se às leis, caso contrário, não seria mais príncipe; que ele deixou de ser príncipe por direito divino e que, a partir de então, era príncipe pelo consentimento do povo, que passava a ser soberano; e que ele não podia desfazer o que a Assembléia fez. Conceitos extremamente ousados para a época.)
Por esta última interpelação ao príncipe-regente, Soares Lisboa foi acusado do crime de abusar da liberdade de imprensa. Submetido a julgamento – o primeiro de uma longa série na história da imprensa brasileira -, foi absolvido por um júri popular, também o primeiro instalado no país. O Espelho, como poderia esperar-se, protestou contra a absolvição; temia que as ideias do absolvido se propagassem.
Além de insistir no juramento prévio da Carta Magna por d. Pedro, Soares Lisboa se opôs, igualmente, ao direito de veto absoluto à Constituição, reivindicado por d. Pedro. Por essa postura, alguns historiadores consideram o Correio o jornal mais radical do Rio.
Soares Lisboa provocou realmente a irritação de d. Pedro quando o chamou de democrata e republicano. Em outubro de 1822, dias depois da aclamação do imperador, escreveu: “Eis o homem singular! Eis o Pedro Primeiro sem Segundo! Eis um puro democrata!!!” Atribuiu a d. Pedro uma curiosa disposição que certamente nunca passara pela cabeça do monarca: “O Brasil precisa e deve ser livre para ser feliz, e, se os povos manifestam o geral desejo de serem republicanos, não encontrarão em mim oposição; antes farei quanto puder para que o consigam e eu me contento em ser seu concidadão”.
Dessa vez, não foi só O Espelho o único a reclamar pela ousadia do jornalista ao atribuir ao imperador pensamentos tão revolucionários. Para o governo de José Bonifácio, Soares Lisboa tinha ido longe demais. Foi intimado a comparecer perante o intendente geral de polícia, que o proibiu de escrever e ordenou sua saída do país em oito dias, sob pena de prisão. Octavio Tarquínio de Sousa conta o que aconteceu:
“João Soares Lisboa, tréfego jornalista português, vinha publicando artigos que [a José Bonifácio] lhe pareciam demagógicos e contrários à monarquia constitucional. Havia em verdade frases ambíguas nesses artigos e o propósito mais ou menos manifesto de criar confusão. Suspendeu o jornal e deu ordem ao jornalista de deixar o país no prazo de oito dias”.
D. Pedro, porém, cancelou a ordem de expulsão e Soares Lisboa continuou no Rio. Quando José Bonifácio decidiu fechar os jornais liberais, numa medida conhecida como a Bonifácia, Soares Lisboa partiu para Buenos Aires, onde encontraria Gonçalves Ledo, o antigo redator do Reverbero. Mas nem lá conseguiria livrar-se dos persistentes ataques de O Espelho. De Buenos Aires, escreveu uma carta a um conhecido em Montevidéu, com críticas a d. Pedro pela decisão de só jurar a Constituição se fosse digna dele. “Quer dizer, que se lhe não agradar a Constituição mandará fuzilar os que a fizeram!!!”
Ao voltar ao Rio, em fevereiro de 1823, foi preso por determinação dos Andradas. Na cadeia, ainda sofreu os insultos do imperador através do Espelho. Submetido a julgamento, o conteúdo da carta interceptada contribuiu para sua condenação, no mês de julho, a dez anos de prisão e multa de 100$000 (100 mil réis), reduzida depois para oito anos e 50$000.
Do cárcere, voltou a publicar o Correio do Rio de Janeiro. Em junho e julho saíram oito números esporádicos e circulou diariamente de novo, de 1º de agosto a 24 de novembro desse ano. Era impresso na tipografia de Torres, localizada, muito adequadamente, na rua da Cadeia. Aos leitores, ele comunicou da prisão no dia 28 de julho: “Este periódico há de continuar diário em números extraordinários até o fim do corrente mês, e abre-se subscrição mensal para que se entregue nas casas dos subscritores. Preço da subscrição 1$600 (1.600 réis) por mês. Quem quiser subscrever-se dirija-se à Cadeia, onde reside o Redator”.
A possibilidade de publicar de novo o jornal foi, de certa maneira, uma concessão do Imperador, que passara a hostilizar os Andradas, agora na oposição, sabendo da inimizade que lhes dedicava Soares Lisboa. Efetivamente, o Correio voltou a atacar os três irmãos, “as três fúrias infernais”, e seu jornal, O Tamoyo, que eles fundaram para defender-se. Lustosa, que criticou seu estilo, reconhece que Soares Lisboa “voltara melhor redator do que fora”, e que escreveu da prisão seus melhores artigos.
Soares Lisboa denunciou as condições em que viviam os presos, com os ferros causando um embrutecimento que tornava o homem mais sensível um estúpido ou autômato e queixou-se das “moléstias adquiridas no cárcere por falta de exercício”. Continuou também em sua campanha contra o poder de veto absoluto à Constituição que se arrogara o Imperador e insistiu em que os poderes dele estavam subordinados à Assembléia. Quando os Andradas foram desterrados, Soares Lisboa foi indultado com a condição de sair do Brasil. Gondim da Fonseca afirma que Lisboa ajudou em 1824 a Pierre Plancher, que anos mais tarde lançaria o Jornal do Commercio, a publicar o seu primeiro jornal no Brasil, Spectador Brasileiro, o que é altamente improvável.
Quando Soares Lisboa partiu, rumo à Europa, o navio fez escala em Recife no momento em que estava ocorrendo a revolta da Confederação do Equador. Desembarcou e participou do movimento, tornando-se seu “partidário mais leal”, segundo Alfredo de Carvalho. Publicou seis números de um novo jornal, o Dezengano aos Brazileiros, defendendo os ideais republicanos, e participou dos combates contra as tropas imperiais. Morreu numa emboscada em Couro d’Anta, no último dia do mês de novembro de 1824.
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[Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]