Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Programa “inventa” doença psicológica

No último dia 26 de julho, a equipe do programa Manhã Maior, da RedeTV, entrou em contato com a RISSCA (Rede de Incentivo à Saúde e Satisfação Corporal e Alimentar) por meio de Natália Bonfim (ativista e estudante de Psicologia) para colaborarmos em uma pauta descrita no primeiro assunto do email como “REDETV – Entrevista anorexia / depressão”. Segue um trecho desse primeiro email:

“Boa Tarde Natalia,

(…) Na semana que vem estaremos fazendo um especial sobre Depressão e abordaremos diversos casos em cada dia da semana. Na quarta-feira, 03/08, iremos falar sobre Depressão e Transtorno alimentar, como esses dois problemas andam juntos e um acaba levando ao outro (…).

Como a RISSCA possui a missão de disseminar informação correta não só sobre transtornos alimentares, como também promover o questionamento dos atuais padrões de beleza, saúde e satisfação corporal de nossa sociedade, que comumente levam as pessoas à insatisfação com seus corpos, consideramos uma excelente oportunidade de expor sobre o tema em uma rede aberta de televisão, em um programa de alcance nacional.”

Retornei o email de Luana da Silveira, produtora do programa, e logo em seguida falei ao telefone com Andrea Andrade. Confirmei minha participação em uma gravação na quinta-feira, 28 de julho, e indiquei Andrea Paulino (também integrante da RISSCA, ativista). Contei brevemente minha experiência com transtorno alimentar, disse que achava importante o relato de depressão e transtorno alimentar, deixando bem claro que eu era ativista e que meu papel era bem mais didático do que de querer mostrar um lado de destruição. Até porque não vejo deste modo.

“Engano de uma das apresentadoras”

Entretanto, no programa que foi ao ar no dia 3 de agosto e que fazia parte de uma série semanal que abordaria o tema depressão, classificaram, ao invés de Transtornos Alimentares e Depressão, erroneamente como Depressão Alimentar. Enviei um email solicitando a errata, quepodeseracessadoaqui:

“(…) Há mais de oito anos damos entrevistas a quem nos pede, pois achamos necessário falar (…) para chegar aonde as redes não chegam e talvez mudar as escolhas de quem passa ou convive com a situação. Um transtorno alimentar não é uma coisa óbvia como fazer dieta, nem tão simples como querer parecer com algum famoso. Transtorno alimentar também não dá depressão. Mas até pela falta de nutrientes provoca alteração de hormônios que pode acarretar desânimo, insônia e falta de vontade de fazer coisas simples e rotineiras. Isso não se chama ‘Depressão Alimentar’, como foi dito no programa. Depressão alimentar não existe. Entendemos a edição e as paródias em temáticas jornalísticas, mas não é possível criar neologismos com termos médicos. Ou teríamos ‘Salmonela Emocional’, ‘Azia Psicológica’, ‘Gula Hepática’. Então, como nós, daqui da RISSCA, somos um coletivo ativista interessado em divulgar e promover a Saúde e Satisfação Corporal, gostaríamos que o programa Manhã Maior publicasse essa errata. Uma vez que estivemos no programa não com a intenção de sermos personagens-coitadinhas, mas sim, como ativistas que lutam para que as pessoas sejam esclarecidas. É um trabalho didático, mesmo. Como a apresentadora diznessevídeo, em respeito ao público espectador e a responsabilidade que um programa televisivo em rede aberta representa gostaríamos que o uso do termo fosse corrigido, pois se pudéssemos nós mesmos faríamos isso ao vivo.”

A resposta da produção (todaadiscussãopodeseracompanhadanoGrupodaRISSCAdoFacebook):

“(…) Desde o princípio de nosso contato foi explicado que abordaríamos o assunto dentro de um especial sobre depressão, sabemos que o termo ‘depressão alimentar’ não existe, se ele foi citado em algum momento da pauta, foi por engano de uma das apresentadoras mas fomos claros que pode existir. Depressão seguida de transtorno alimentar ou vice-versa, como um problema acaba levando ao outro. Tivemos no estúdio a especialista dra. Liliane Kijner, que, inclusive, cuidou de um caso de uma garota que desenvolveu anorexia devido à depressão. Sendo assim, em nenhum momento inventamos uma ‘Depressão Alimentar’, do contrário nem mesmo um especialista renomado teria aceitado participar. Se necessário, conversem com a Andrea, que esteve aqui no estúdio, ela mais do que ninguém pode dizer que o tema foi abordado da melhor forma possível sem expor ninguém ou criar algo que não existe. Pedimos desculpa se em algum momento vocês se sentiram injustiçadas ou ofendidas, pois tomamos o maior cuidado para que isso não ocorresse.”

Caçando aspas

Retornei o email dela, disse que somos um grupo multidisciplinar com psicólogos, psiquiatras e que todos estavam de comum acordo com o erro. Disse que em nenhum momento me senti exposta ou vitimada. Mas não responderam. O grande problema é que aparece depressão alimentar o tempo todo na legenda das reportagens (vídeo1, vídeo2).

Assim, Juliana Medeiros, uma das psicólogas da RISSCA, enviou um email à produção, também sem retorno:

“Meu nome é Juliana Medeiros, sou psicóloga e faço parte da RISSCA, que você deve ter conhecido por esses dias em virtude do programa que foi ao ar essa semana e que teve como entrevistadas a Maira Begali e a Dea Paulino, além de uma psiquiatra do Proata. (…) Fiquei sabendo que houve um equívoco com a divulgação da expressão ‘depressão alimentar’ – expressão que sequer existe em qualquer manual de psiquiatria, e como vocês se empenharam tanto em abordar o tema de um jeito bacana, seria muito esquisito passar uma informação errada ao público de vocês. Entendi que o foco da apresentação de vocês era depressão (como você abordou no e-mail endereçado à Maira Begali), mas entenda que nem todo mundo que tem uma depressão tem um comprometimento alimentar associado. E da mesma forma, nem todo mundo que sofre de um transtorno alimentar tem depressão – são problemas que até podem acometer uma mesma pessoa, mas não é regra. E também não temos pesquisas suficientes que possam afirmar que depressão causa Transtorno Alimentar e vice-versa. Só podemos observar que um quadro agrava o outro quando uma pessoa vivencia os dois simultaneamente. E nem sempre podemos estabelecer quem veio primeiro na história de vida do paciente. E tampouco podemos dizer que uma pessoa sofre de ‘Depressão Alimentar’ por ter sido acometida dos dois transtornos. Saber dar o nome certo das coisas é parte fundamental não só da informação, como de qualquer tratamento que pretenda ser bem-sucedido.”

Não tivemos retorno algum, muito menos a errata. Inventar um tipo de doença é gravíssimo. Mas outras coisas vão além. A grande mídia não-colaborativa está acostumada, dentre muitas coisas, a dois vícios: pautar o que acha relevante para a sociedade e dar sua visão editorial rasa e óbvia, voltada à simplificação. A repórter Ana Paula Abrão, que foi me entrevistar, não havia sido pautada anteriormente pela editora e quando eu disse que, no caso de Transtornos Alimentares, sintomas ligados à depressão são correlatos e que isso não era depressão em si, ela me respondeu: “Mas então isso foge porque a pauta é sobre depressão.” É o jornalismo industrial, on demand: inventar uma pauta e sair caçando aspas que possam suprir as respostas para seu produto televisivo.

Paciente injustiçada

Segunda coisa: a mídia grande não está acostumada a ter especialistas que superaram o problema, como não é só meu caso, como o da Mara Gabrili, por exemplo. Existem milhares de pessoas que superaram suas dificuldades sejam elas físicas ou emocionais. Luciandra Vendramini e Roberto Carlos admitem ter TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), Debora Evelyn ter passado pela anorexia nervosa, Cassia Kiss pela bulimia. O problema é que o jornalismo-espetáculo prefere a vitimização ou a superação mágica com finais sempre felizes, sem contar o que é o problema didaticamente [em nota, a MTV tem realizado um trabalho interessante com a série TrueLife].

Quando pedi a errata, a produção me tratou não como uma colega de trabalho, ou como público, ou mesmo como especialista que merece ser levada em consideração [a Rede Globo de televisão, também grande empresa de mídia, publicou um manual que coloca como um dos princípios editoriais básicos a correção]. Fui tratada como uma paciente que se sentiu injustiçada e com rancorzinho de ter sua vida exposta. Talvez a equipe do Manhã Maior não consiga mensurar que inventar uma doença psicológica pode acarretar problemas para centenas de pessoas. Se aqueles que se pautam pela televisão começarem a achar que são acometidos por Depressão Alimentar, o que eles irão fazer?

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[Maira Begalli é diretora de Projeto de Meio Ambiente da Veredas, São Paulo, SP]