O governo, qualquer governo, faz mal à imprensa. A imprensa, toda a imprensa, faz bem ao governo – principalmente quando critica. Governo não precisa do “sim” da imprensa. Governo evolui com o “não” da imprensa.
A proximidade da imprensa com o governo abafa, distorce o jornalismo. A distância entre governo e imprensa é conveniente para ambos, útil para a sociedade e saudável para a verdade. Jornalismo é tudo aquilo de que o governo não gosta. Tudo aquilo de que o governo gosta é propaganda. A imprensa, numa definição mais simples, deve ser o fiscal do poder e a voz do povo. Com o estrito cuidado para não inverter essa equação.
Álibi insustentável
Todas as afirmações acima foram feitas em 9 de maio passado, na Universidade de Brasília (UnB), pelo jornalista que assina este artigo. Elas contrariam, na essência, tudo o que Luiz Inácio Lula da Silva praticou e pregou em seus oito anos como presidente, no campo atritado das relações entre seu governo e a mídia. Este sentimento belicoso foi oficializado numa longa conversa com a revista piauí, em janeiro de 2009, quando confessou que não lia jornais, revistas, blogs ou sites. E explicou que não era por falta de tempo: “É porque eu tenho problema de azia”, explicou Lula a Mário Sérgio Conti, diretor da revista.
Pois tudo mudou com sua sucessora, Dilma Rousseff, que demonstra ter um fígado bem mais saudável. A presidente mostrou isso logo na noite de sua vitória na eleição de outubro de 2010, ao exibir um vigor hepático e uma face simpática impensáveis no seu antecessor: “Disse e repito que prefiro o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras. As críticas do jornalismo livre ajudam ao país e são essenciais aos governos democráticos, apontando erros e trazendo o necessário contraditório”, enunciou Dilma, pilotando um cavalo-de-pau que revertia toda a orientação emanada até então pelo Palácio do Planalto. E não era só discurso.
Dilma, como todo mundo sabe, lê jornais e revistas, vê TV e navega na internet. A bile presidencial, produzida a partir dessa leitura atenta, atacou os microorganismos partidários que ameaçavam apodrecer os tecidos da administração federal. Foi a partir de erros apontados por revistas e jornais, que Lula não lia, que Dilma desencadeou uma inédita, fulminante assepsia no seu governo, afastando dois ministros poderosos – Antônio Palocci, da Casa Civl, e Alfredo Nascimento, dos Transportes – e dedetizando o foco crônico do Dnit com a demissão de duas dezenas de servidores. E terminou convocando um general da ativa do Exército para completar a faxina no infeccionado DNIT.
Chamou duas mulheres – Gleisi Hoffmann e Ideli Salvatti – para recompor seu entorno palaciano, sem consultar o PT, e limitou-se a participar sua decisão a Lula, sem consultá-lo previamente. A celeridade do bisturi de Dilma, que cortou fundo a partir das manchetes e revelações de fim de semana da imprensa, desconcertou os partidos da base aliada e assustou o PT, habituado ao estilo manhoso e lerdo de Lula. A ensaiada retaliação dos partidos aliados esmaeceu diante do efeito positivo da ação presidencial junto à opinião pública, desacostumada a ver pronta reação do Planalto aos desvios evidentes de altos funcionários.
Com Lula, tudo se ajeitava. Pegos em flagrante delito, até os aloprados ganhavam o conforto do colo presidencial. Quando explodiu o Mensalão, o maior escândalo de seu governo, em 2005, Lula reagiu com a rigidez de uma gelatina. A primeira reação, instintiva, foi declarar-se traído. Depois, pensando melhor, alegou que não sabia de nada do que ocorria nos gabinetes contíguos ao seu, no Planalto. Por fim, desdenhou, com a versão de que era tudo caixa 2, financiamento clandestino de campanha, pecado que todos os partidos sempre cometeram, disse Lula, ecoando a esperta defesa de Delúbio Soares, o tesoureiro do PT que centralizava o esquema do Mensalão.
Dois procuradores-gerais da República – Antônio Fernando de Souza e Roberto Gurgel – e a unanimidade do Supremo Tribunal Federal reconheceram o Mensalão que Lula desconhecia e aceitaram a denúncia contra 40 mensaleiros, muitos deles amigos e companheiros próximos ao presidente. A começar por José Dirceu, o poderoso chefe da Casa Civil de Lula, acatado na denúncia ao STF como chefe da quadrilha, lindeiro de gabinete com Lula no Planalto e na intimidade do poder.
Este sonso álibi de Lula foi desmentido justamente por um dos jornalistas que ele mais respeita, Ricardo Kotscho, seu ex-secretário de imprensa. Comentando a azeda entrevista à piauí, Kotscho escreveu em seu blog:
“[Lula] é um dos caras mais bem informados que conheço por um simples e bom motivo: conversa o tempo todo com todo tipo de gente e vai filtrando as informações que podem ser úteis para a sua tomada de decisões. Em vez de ler o que fulano disse na imprensa, chama o fulano e conversa diretamente com ele, quer dizer, não recebe informações de segunda mão, mas direto da fonte”.
Bandeira antiga
É difícil acreditar, portanto, que um cara tão bem informado, com tanta conversa como Lula, pudesse ser iludido por tanta gente, durante tanto tempo, sobre o insinuante Mensalão.
Coincidência ou não, em 2009, a partir da Conferência Nacional de Comunicação, convocada por decreto de Lula, começou a sobrevoar o país o fantasma de um certo “Conselho Federal de Comunicação”, que entre outras atribuições teria o poder de “orientar, fiscalizar e monitorar” a imprensa, a pretexto de um “controle social” da mídia. A reação desatada colocou a proposta em banho-maria, que se evaporou com o final do governo Lula.
Os últimos vapores desta sulfúrica idéia se diluíram neste final de semana. Nem o PT defende mais a sugestão de um conselho federal para a mídia. A Executiva Nacional do partido, reunida no Rio de Janeiro, defendeu um caminho oposto: a ampliação da liberdade de expressão no país, para “repudiar e impedir qualquer tipo de censura”. Exatamente o contrário do ameaçador Conselho Federal de Comunicação, que nem foi citado no texto da resolução política aprovada pelo conselho supremo do PT e divulgada oficialmente no domingo (7/8).
Redirecionado para os novos tempos de Dilma Rousseff – uma presidente que prefere o barulho de uma imprensa livre e as críticas de um jornalismo que aponta erros e traz o necessário contraditório –, o PT começa a deixar o desvio da intolerância e resgata uma bandeira que havia desfraldado em sua fundação, 31 anos atrás.
O PT, como Dilma, abandonou Lula à sua própria azia.
***
[Luiz Cláudio Cunha é jornalista, Brasília, DF]