Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sem golpear as máfias, nada feito

O noticiário sobre o assassinato da juíza Patrícia Acioli pôs no primeiro plano, no sábado (13/8), a questão da segurança dos juízes. Destacou-se que Acioli estava sem escolta policial. Discutiu-se a criação de uma guarda especial para a Justiça, proposta em lei que tramita no Congresso. Interpretou-se o fato como trágica afronta ao Estado.

No dia seguinte, a Folha de S. Paulo escrevia: “Juíza do Rio foi agredida 2 vezes por namorado. Polícia não descarta que assassinato da magistrada tenha motivo passional”. Com um “atenuante” na continuação do subtítulo: “Patrícia Lourival Acioli, morta na quinta, era tida como linha-dura no combate a milícias e a PMs acusados de crimes”.

O móvel do assassinato importa criminalmente, mas não politicamente. A juíza estava sob ameaça há muito tempo. Contrapunha-se a interesses de policiais (militares e civis), bombeiros e milicianos que formam uma mesma rede onde o que varia é o grau de delinquência.

Ressonâncias italianas

Para juízes ameaçados e seus colegas, permanece a questão de fundo: a Justiça brasileira, que já era lenta e distorcida (“quem pode mais chora menos”), há mais ou menos duas décadas passou a se ver em condição análoga à da Justiça italiana guerreada pela máfia. Em maio passado, a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) divulgou levantamento segundo o qual 40 dos cerca de 400 juízes federais de varas criminais do país estavam sob ameaça do crime organizado (Folha, 3/5/11).

Para todos os cidadãos, o assassinato de Patrícia Acioli foi um golpe contra o funcionamento da democracia, que não sobrevive à margem de um sistema jurídico-institucional.

Associações de magistrados pedem que se acelere a criação da guarda especial. Ela não virá sem problemas. Todos os corpos do Estado que exercem (melhor dito, deveriam exercer) o monopólio legal da força estão contaminados em alguma medida pela criminalidade – Forças Armadas inclusive.

Difícil imaginar que os juízes consigam recrutar e preservar quadros imunes à atração da dinheirama que o crime organizado manipula. Como diz um provérbio chinês, “o fogo testa o ouro e o ouro testa o homem”.

Mas os juízes têm direito a proteção específica, evidentemente. Sem uma providência desse tipo fica difícil imaginar a superação do quadro atual, na medida em que as polícias judiciária (civil) e militar não só se mostram incapazes de garantir a incolumidade dos magistrados, ou mesmo dar-lhes a sensação de segurança, como abrigam em muitos estados da Federação criminosos que deveriam combater. O filme Tropa de Elite 2 é quase um documentário a esse respeito.

Noticiário aquém do principal

Até o domingo (14/8), a despeito de generosos espaços concedidos nas diferentes mídias, relativamente pouco se havia escrito, em qualidade e diversidade de aspectos, sobre o assassinato da juíza.

Esse “pouco” é precioso, indispensável à reflexão. Mas, como sempre, é necessário ir além.

No caso, partindo-se da premissa de que o sistema de execuções penais há muito deixou de cumprir suas finalidades, fenômeno que se agrava década após década. Hoje, do ponto de vista da economia do crime, tanto faz que o criminoso cumpra pena integral ou parte dela. Preso ou em liberdade, ele é um “trabalhador” ativo, porque organizações criminosas dominam as prisões.

Na pele de cada indivíduo, ficar preso ou solto faz uma diferença colossal, embora uma cadeia “dominada” possa ser mais segura do que a rua. Também do ponto de vista operacional há vantagem em estar livre. Se não fosse assim, os bandidos (bandidos-bandidos e policiais-bandidos) não fariam ameaças nem atentados contra juízes que os punem.

Se a polícia não funciona como desejaria a sociedade (funciona a seu próprio grado, inclusive para delinquir, insista-se), se a Justiça é falha, se o cumprimento das penas não detém o crime, o que se pode fazer?

O alvo ausente

É o que está ausente do noticiário: prejudicar os negócios mafiosos. Truncar o suprimento de dinheiro, combustível de todo o sistema.

O leitor, já tarimbado pelo desânimo, dirá: quem consegue? É verdade que, por exemplo, a movimentação de Fernandinho Beira-Mar de um presídio de segurança para outro não afetou a prosperidade dele e de sua família. Continua poderoso. Casos assim abundam na crônica do crime.

Chegar aos chefes inconspícuos das redes de tráfico, contrabando, lavagem de dinheiro não é tarefa para investigadores e delegados desatinados.

Chefões insuspeitados

Em Lavagem de dinheiro. Negócios ilícitos transformados em atividades legais (publicado no Brasil em 2001), Peter Lilley imagina um personagem que…

…“nasceu na América do Sul e mantém domicílio em Londres e na Suíça. […] Tem uma adorável esposa italiana que compra em todas as lojas de grife, três filhos que estudam em escolas particulares e, honrando seus antepassados, fala fluentemente pelo menos três idiomas. Faz parte do conselho financeiro de diversas companhias respeitáveis de toda a Europa e sabe-se que tem fortuna própria. […] É universalmente admirado e sua honestidade nunca foi questionada. O que é uma pena, porque sua riqueza é gerada por drogas provenientes da América do Sul e por atividades criminosas que lhes podem ser associadas.”

Outro problema é a conexão estreitíssima entre crime e política. Não se trata aqui da tentativa do PCC de eleger, em 2002 e 2006, deputados estadual e federal por São Paulo. É algo muito menos rocambolesco e muito mais frequente: o papel de policiais, traficantes e milícias − e brevemente, anotem em seus caderninhos, de UPPs – em campanhas eleitorais, canalizando dinheiro e votos para determinados candidatos.

Difícil, portanto. Mas longe de impossível.

Exemplo acriano

O exemplo simétrico é o do Acre, estado que era dominado por uma máfia da qual o chefe emblemático era o coronel PM e deputado federal Hildebrando Pascoal, o da motosserra.

Pascoal chegou a comandar a PM acriana. Assumiu mandato na Câmara dos Deputados em 1999. Logo lhe fez companhia um dossiê do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), do Ministério da Justiça, que motivou a criação de uma CPI. O CDDPH investigava o coronel desde 1995. Da CPI resultou a cassação de Pascoal, entregue à Justiça Federal e condenado. Cumpre pena. Ainda não foi julgado por todos os crimes que lhe são imputados.

Esse processo de “limpeza” ajudou a abrir caminho para a hegemonia de um novo grupo político, do PT, no qual se destacaram os irmãos Tião (atual governador) e Jorge Viana (senador e ex-governador), e a figura nacionalmente mais importante, a ex-candidata à presidência da República Marina Silva.