Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O que define o jornalista como Autor?

No verão de 1981, chegava, acalorada e tensa, ao apartamento do intelectual português Vergílio Ferreira em Lisboa. Fui conduzida ao escritório no fundo do apartamento, passando pelo corredor lotado de livros. O dono da casa me convidou a sentar à sua frente e, ereto, com expressão austera, me inquiriu: “Afinal, qual é seu trabalho?” Logo me apresentei como jornalista que vinha reunir uma série de depoimentos dos escritores contemporâneos em Portugal. Acrescentei, naquele momento com ousadia: posteriormente faria o mesmo com os autores brasileiros e os africanos de língua portuguesa. Vergílio Ferreira contra-atacou: “Mas então trabalha com as literaturas?” Respondi de imediato: não sou nem crítica nem historiadora, sou jornalista e estou aqui para colher sua palavra, gosto muito da ficção que escreve, mas queria ouvi-lo também sobre a literatura portuguesa contemporânea e seu processo de criação.

(Pensei cá com os meus botões, será que o consagrado intelectual ali na minha frente vai me aceitar como simples repórter?)

Assumiu uma posição de juiz europeu e afirmou com segurança: “Para mim, a literatura latino-americana só existe em Jorge Luis Borges e isto porque Borges não é nem argentino nem latino-americano, é muito mais inglês…”

(Fiquei inquieta, não pude calar.)

Desculpe, Vergílio, mas não posso concordar; conheço bem a obra de Borges que, por sinal, consegui publicar no Brasil na Editora Globo de Porto Alegre no fim dos anos 1960 antes de me mudar para São Paulo, e penso que seus textos têm uma marca portenha e argentina indiscutíveis.

O autor de Alegria Breve me encarou com espanto, se curvou levemente em minha direção e o brilho dos olhos passou uma nova mensagem. A partir daí a conversa fluiu com cumplicidade e respeito mútuo.

Valores hierárquicos

Vergílio Ferreira (1916-1996) tem sido uma referência exemplar de como na cultura européia há uma fronteira entre jornalista e intelectual. À época em que me dediquei ao trabalho das literaturas de língua portuguesa, de 1982 a 1987, quem escrevia sobre o tema era quase sempre o crítico acadêmico ou o jornalista que assumia a face de escritor, comentarista, ensaísta. Era inconcebível o mapeamento e aproximação compreensiva da produção literária através da reportagem jornalística.

Por outro lado, a vertente opinativa (da crítica literária) frequentava o espaço nobre do jornalismo sempre associada a intelectuais, uma casta distinta dos jornalistas. Daí a importância da presente reflexão de Fábio Pereira neste livro.

Originária de tese de doutorado defendida na Universidade de Brasília em 2010, a obra percorre os caminhos da construção identitária dos jornalistas-intelectuais no Brasil. Ao escolher um grupo de profissionais cujo eu biográfico responde às suas interrogações – Adísia Sá, Alberto Dines, Antônio Hohlfeldt, Carlos Chagas, Carlos Heitor Cony, Flávio Tavares, Juremir Machado da Silva, Mino Carta, Raimundo Pereira e Zuenir Ventura – o pesquisador partilha com o leitor as sutilezas das fronteiras mestiças.

Embora a tradição européia, com ênfase na bibliografia francesa, estabeleça marcos que separam o jornalista como uma espécie de técnico, hierarquicamente abaixo do intelectual pleno, a leitura rigorosa de Fábio Pereira conduz a encruzilhadas e cruzamentos em que fica difícil a separação entre “raça pura” e “raça impura”.

A essência do percurso da pesquisa reside na articulação indivíduo-sociedade, fruto de processos de negociação simbólica. Ou o que os neurocientistas atribuem à mente consciente ou inteligência humana (vide António Damásio, O Livro da Consciência, a construção do cérebro consciente, Lisboa, Temas e Debates/Círculo dos Leitores, 2010). Ora, nesse sentido, a produção simbólica que daí decorre não é intelectualmente nobre ou subalterna. Fábio Pereira, no entanto, persiste na busca das balizas de identidades dos assim nomeados intelectuais e dos jornalistas, conforme valores culturais e reflexão acadêmica. Ao fim e ao cabo ficariam categorizados como intelectuais os cientistas, os ensaístas e os artistas (escritores, é claro, aí incluídos). Para isso, o autor se vale da análise das motivações, das definições intencionais e das carreiras que acabam por fixar certas coerências na experiência individual e nas culturas.

Mas o residual hierárquico positivista muito bem sistematizado por Augusto Comte prossegue alijando o jornalista da classe dos intelectuais. O estudo que o livro faz do estatuto e reputação dos jornalistas-intelectuais bem demonstra a resistência dos valores hierárquicos por mais que se conteste esse paradigma.

Questão recorrente

Na arquitetura do livro de Fábio Pereira há uma parte dedicada aos contextos históricos, em que o capítulo da profissionalização do jornalista, cujos alicerces estão no fim do século 19, oferece chaves significativas para desconstruir dogmas persistentes. Tão logo se percebe a complexidade das sociedades contemporâneas, da era urbano-industrial à era digital, fica inviável segregar a presença do repórter como não-intelectual diante do intelectual-editorialista, cronista, comentarista e crítico.

O Brasil, aliás, já tem uma bibliografia substantiva que põe em destaque o que define o jornalista: a mediação (ou negociação simbólica) autoral. Toda a massa crítica acumulada nas escolas de jornalismo desde os anos 1940 se consubstancia na identidade autoral do jornalista. As grandes narrativas não teriam a importância sócio-política-cultural que têm sem essa assinatura original. A interpretação do acontecimento contemporâneo antecipa, na reportagem, os possíveis julgamentos e opiniões consistentes que dela decorrerem numa cobertura jornalística de fôlego.

Não é, pois, de estranhar as trajetórias híbridas e o desaparecimento do hífen em jornalistas-intelectuais. Se, como diz o autor, “a margem de manobra do jornalista no mundo social” é muitas vezes afetada pelo conflito empresarial, quase sempre o jornalista que se constitui em Autor tem armas para negociar ou, no limite, romper o vínculo empregatício, perante as pressões patronais, editoriais ou de ameaça ética à sua reputação.

Também neste campo a universidade tem um peso decisivo na discussão que se trava à luz da convivência sócio-acadêmica. Aliás, Fábio Pereira colhe nos depoimentos dos jornalistas por ele selecionados visões de mundo que confluem na tríade que constitui a solidez da autoria: ética, técnica e estética.

Os momentos macro-sociais do século 20 que o livro enfatiza são preciosos para uma constante reflexão, seja pelo ângulo da militância política nas ditaduras, seja pelas leituras possíveis de país. E aí não se pode padecer de saudosismo dos anos 1950-1960 ou de interrupções e cortes históricos, se, partindo de uma visão processual, atualizamos permanentemente os desafios da formação profissional.

Hoje os pesquisadores se debruçam sobre as tendências do século 21 e debatem problemas epistemológicos inter e transdisciplinares que põem à prova qualquer intelectual, entre eles o comunicador social. A segmentação dos conteúdos e falta da articulação inteligente dos nexos de significação da circunstância humana é um bom exemplo; a pedagogia contemporânea, por sua vez, está procurando novas respostas para o estatuto do professor na formação autoral; a prática democrática exigiria a ampliação dos observatórios de crítica dos meios como espaço dialógico da cidadania; no plano da individualidade criativa, uma questão recorrente por resolver – os direitos de autor nas infovias ou para voltar aos séculos anteriores, a liberdade de expressão e o direito social à informação. Eis um pequeno itinerário com que as mentes conscientes se confrontam no cotidiano do jornalismo, na ciência acadêmica ou na reflexão ensaística.

Diálogo social

Os protagonistas da cena aberta neste livro se subdividem em jornalistas, jornalistas-escritores, escritores-jornalistas, jornalistas-acadêmicos, acadêmicos, ensaístas e ficcionistas. Cavacos do ofício da categorização, dos gêneros ou da hierarquia. A decisão biográfica de fato cria caminhos e cercas, mas a experiência de vida, estudos e reflexão passam pela mente e resultam no denominador comum da produção intelectual: administrar, compreender e transformar os dados de realidade.

E o que faz o jornalista quando levanta informações, administra uma pauta, sai a campo para articular significados e cria uma narrativa de indiscutível autoria? Em que se diferencia de outros intelectuais? Em densidade e complexidade, não. Em mapeamento e descoberta, não. No brilho de histórias de vida, não. Em valorização das raízes históricas, não. Em afloramento de marcas de identidade, não.

A narrativa autoral do jornalista só se distingue de outras narrativas inteligentes pela urgência da contemporaneidade e pela linguagem do diálogo social que pesquisa a vida inteira.

Eis o que o intelectual Fábio Pereira nos inspira.

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[Cremilda Medina, jornalista, pesquisadora é professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, autora de 14 livros, o mais recente deles, Ciência e Jornalismo, da herança positivista ao diálogo dos afetos (Summus Editorial, 2008)]